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Antes tarde do que nunca: Gustavo Dudamel rompe com o chavismo

O maestro venezuelano não foi o primeiro (nem o maior) nome da música erudita a ser usado como arma de propaganda por uma ditadura

Por Jerônimo Teixeira Materia seguir SEGUIR Materia seguir SEGUINDO Atualizado em 12 Maio 2017, 13h25 - Publicado em 11 Maio 2017, 23h30

Gustavo Dudamel não apoia mais o governo venezuelano. O maestro da Orquestra Simon Bolívar e da Filarmônica de Los Angeles declarou, na semana passada, seu rompimento com Nicolás Maduro por meio de um texto, em espanhol e inglês, publicado nas redes sociais. Talvez não fosse o caso de falar em “rompimento”, já que Dudamel sempre se pretendeu apolítico, um artista que coloca a música acima  de tudo (De la musique avant toute chose, rezava a arte poética de Verlaine). Só que essa propalada neutralidade nunca foi convincente. Garoto-prodígio do Sistema, organização que oferece educação musical sobretudo para crianças de bairros periféricos e pobres da Venezuela, Dudamel deixou-se converter em peça de relações públicas de um governo autocrático. Em 2013, viajou de Los Angeles a Caracas especialmente para tocar nos funerais de Hugo Chávez,  mentor e antecessor de Maduro. No ano seguinte, foi criticado por não cancelar um concerto da Orquestra Jovem Simon Bolívar em um momento especialmente grave da sempre grave crise venezuelana: Dudamel conduzia sua orquestra de jovens educados pelo Sistema enquanto, nas ruas da capital venezuelana, foram mortos três estudantes que participavam de uma manifestação contra o governo. Pois este mês, em um protesto no dia 4, caiu morto outro estudante, Armando Cañizales Carrillo. Ele tocava viola em uma das orquestras do Sistema. A morte de um músico foi, afinal, determinante para Dudamel mudar de postura. “Nada pode justificar o derramamento de sangue”, declarou o maestro em sua nota.

O regime Chávez/Maduro já derramou sangue antes da morte de Carrillo, o que permite concluir que só o sangue de um músico comove o maestro. O caso lembra a carta aberta em que o Nobel português José Saramago retirou, em 2003, seu apoio ao regime comunista de Cuba, em razão do fuzilamento de  três pessoas que cometeram o crime imperdoável de tentar fugir da ilha. “Até aqui cheguei”, dizia o Nobel português. As execuções de La Cabaña, a prisão de dissidentes, a repressão aos gays, a censura, o partido único: o autor de Ensaio sobre a Cegueira acompanhou o regime de Fidel Castro ao longo de tudo isso. O fuzilamento de mais três cubanos terá excedido alguma linha arbitrária estabelecida por Saramago, não se sabe se por razões morais ou aritméticas.
Caberia, para os dois casos, o chavão “antes tarde do que nunca”. No caso de Dudamel, porém, a pianista venezuelana Gabriela Montero diz que é mesmo tarde demais. Em uma nota dura mas elegante também divulgada em redes sociais, ela lembra que Dudamel, por anos, foi paparicado pelo establishment chavista. Era alimentado pela “mão magnânima” do governo, a mesma mão que estava “destruindo uma nação inteira”. Gabriela acusa Dudamel de colocar, em um baixo cálculo utilitarista, os seus músicos acima de toda uma população que sofre. Falou das viagens de jatinho, turnês e festas com que o governo cercou seu garoto-propaganda. (Poderia ter lembrado ainda que Maduro prometera construir uma portentosa casa de concertos em Barquisimeto, cidade natal do maestro. O arquiteto Frank Gehry esteve na Venezuela para, em evento oficial, apresentar seu projeto para a casa, que se chamaria… La Sala Dudamel!)

Não há, na nota de Dudamel, nenhuma referência a sua colaboração pregressa com o “Socialismo do Século XXI”. O texto começa professando a dedicação do maestro à música e à arte como formas de “transformar a sociedade” (as transformações promovidas por Chávez e Maduro são bem conhecidas), depois arrola umas quantas platitudes sobre o respeito e o entendimento necessários à democracia, segue para outra profissão de fé nos valores mais elevados do espírito humano – o bem, a verdade e a beleza – e termina com um “chamado urgente” ao presidente da República (cujo nome não é citado) para que “ouça a voz do povo”. Tudo muito genérico e vago. A se levar em consideração o que Rosa Montero diz de Gustavo Dudamel, tudo muito hipócrita.

Grandes maestros já apoiaram, ativa ou tacitamente, regimes autoritários ainda piores que o venezuelano. Entre conhecidos figurões da música erudita que serviram ao nazismo, estão  Herbert von Karajan e Wilhelm Furtwängler. No final do vídeo abaixo, altos mandatários do Terceiro Reich aplaudem o maestro e a Filarmônica de Berlim. O homem esquálido que, ao final da Nona Sinfonia de Beethoven, cumprimenta Furtwängler com um aperto de mão é Joseph Goebbels, ministro da propaganda. O concerto foi em honra ao aniversário de Hitler, em 20 de abril de 1942. A Solução Final já estava em curso.

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Mas quero falar de outro exemplo, talvez mais ambíguo em seus contornos morais: o compositor russo Dmitri Shostakovich. Ele é o personagem de O Ruído do Tempo, excepcional romance do escritor Julian Barnes, publicado no Brasil este ano, pela Rocco. Shostakovich foi usado como garoto-propaganda pelo regime soviético, durante e depois do stalinismo. Mas também foi acossado pelas estreitas e estultas diretrizes ideológicas que o comunismo tentou impor à arte. Em 1936, Stalin foi a uma apresentação de  Lady Macbeth do Distrito de Mtzensk, ópera de Shostakovich baseada em uma novela de Nikolai Leskov, e não gostou do que viu e ouviu. Um editorial do Pravda, órgão oficial do regime, disse que Shostakovich fazia “confusão em vez de música”. Foi o que bastou para o compositor cair em desgraça. Reergueu-se nos anos da II Guerra Mundial, quando sua monumental Sétima Sinfonia celebrou a resistência de Leningrado (ou São Petersburgo, hoje e antes da revolução) ao cerco alemão. Fez música de qualidade para lá de duvidosa para filmes que exaltavam Stalin. Mesmo assim, no imediato pós-guerra, pesou novamente sobre ele a suspeita de “formalismo”. Fazia, diziam os críticos alinhados com o regime, música que se afastava do povo.
De outro lado, Shostakovich acabou se consagrando, ainda que tardiamente, como o grande compositor da União Soviética, o artista que melhor representava a ambição estética do comunismo. Foi a grande estrela de uma espécie de festival da cultura soviética promovido em Nova York, em 1949 (nesse evento, um exilado russo, Nicolas Nabokov – primo do autor de Lolita –, pressionou Shostakovich sobre suas posições a respeito de músicos que o Partido Comunista considerava decadentes, e o compositor se viu obrigado a rejeitar publicamente a obra de Stravinski). Em 1960, filiou-se ao Partido Comunista.

Todos esses eventos figuram em O Ruído do Tempo, romance que equilibra imaginação narrativa com respeito aos fatos.  O que se pode concluir sobre Shostakovich? Terá sido um comunista tímido ou um dissidente hesitante? Em um artigo breve publicado no jornal The Guardian (em inglês, aqui), Julian Barnes diz que ele foi um herói. Um covarde, sim, mas um herói, pois viveu em um tempo no qual a covardia era o único modo de sobreviver. Ele talvez pudesse ter seguido o exemplo de Stravinski, partindo para o exílio. Mas nem todos querem ou podem deixar a pátria, os amigos, a família. Sob o terror stalinista, sugere Barnes, Shostakovich fez o que era possível para sobreviver e manter o mínimo de integridade artística.
As atitudes de Shostakovich diante do stalinismo e de Dudamel frente ao bolivarianismo são comparáveis? Parecerá talvez que ambos desejavam devotar-se exclusivamente ao ofício musical, que para eles a política representava apenas o “ruído do tempo” de que fala o título de Barnes. Mas a duas situações são consideravelmente diversas. A pressão foi muito mais dura sobre Shostakovich, que só no final da vida começou a ser aceito pelo regime. Dudamel nunca esteve pessoalmente ameaçado; Shostakovich chegou a ser chamado para um interrogatório pela NKVD, a polícia política de Stalin.
Shostakovich era um homem só, com sua arte. Não desejava representar uma instituição, um grupo, um “coletivo”. Dudamel, ao contrário, é a cara do Sistema. Na carta em que supostamente rompe com Maduro, há uma tentativa bem discernível de justificar o apoio pregresso ao regime chavista. Está lá naquela conversa sobre o poder “transformador” da arte. O maestro não o diz com todas as letras, mas podemos supor que o Sistema encarna esse potencial de transformação. É de fato uma rede admirável de educação musical, que, aliás, já existia antes do governo Chávez. Dependia, no entanto, de apoio governamental, e o governo espertamente compreendeu seu potencial de propaganda. Só que s cores salvacionistas com que se recobriram o Sistema e sua joia maior, a Orquestra Simon Bolívar, já perderam o brilho frente ao desastre social do país. Aulas de violino não vão salvar as crianças da violência, da inflação galopante, da miséria, das filas gigantescas para comprar produtos básicos.
Shostakovich, tal como é representado em O Ruído do Tempo, é um homem em conflito com o Poder, com maiúscula. No final, consegue uma acomodação precária mas relativamente confortável com essa entidade opressiva. Dudamel não teria, desconfio, a carga trágica para ser personagem de um escritor da estirpe de Julian Barnes. Com generosidade, talvez se possa ver nele um artista que se deixou seduzir e iludir pela lisonja oficial.

La Sala Dudamel – que lindo lugar não seria! Uma joia brilhante no meio de um país destruído.

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Preciosidades que encontramos no YouTube: o documentário abaixo oferece um bom panorama das relações difíceis de Shostakovich com o stalinismo. É comovente a seção sobre a Sétima Sinfonia e sua estreia na Leningrado sob cerco nazista (começa em torno de 29m30s, com o próprio Shostakovich ao piano).
Registre-se a triste ironia: quem conduz o documentário é o maestro russo Valery Gergiev, um apoiador do governo de Vladimir Putin.

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