Se o primeiro Natal, dois mil anos atrás, tivesse sido comemorado gastronomicamente por Maria, mãe de Jesus, e seu pai adotivo José, quais seriam os alimentos da festa? É óbvio que o casal comeu frugalmente, até porque se encontrava em condição de pobreza. O Novo Testamento, porém, não faz referência ao cardápio da ocasião.

Aliás, seus autores nunca dedicam atenção especial às comidas das pessoas. Com Jesus deitado em uma manjedoura – espécie de gamela para a forragem dos animais –, Maria e José se alimentaram com o que havia à disposição. Obviamente, a mãe de Jesus ainda apresentava o inconveniente de sentir os efeitos físicos e psicológicos do parto.

Dando asas à imaginação, o ex-pastor presbiteriano brasileiro Rubem Alves (1933-2014), teólogo notável e escritor de rara sensibilidade, achava que Maria e José comeram pão dormido, leite azedo e nozes. “Nada além disso”, dizia.

Rubem Alves costumava protestar simbolicamente contra os excessos gastronômicos das mesas de Natal da atualidade, atulhadas de aves recheadas, cordeiros e leitões assados, bolos e pães ricos, destilados e fermentados à vontade. Todos os anos, comemorava com os amigos o nascimento de Jesus tomando uma sopa.

“A ideia antropológica normal de uma celebração evocativa é procurar reconstituir de algum jeito aquele momento do passado”, explicava. “Se algum extraterrestre visse as mesas natalinas de hoje acharia que festejamos um glutão. O que uma dessas celebrações atuais tem a ver com o nascimento de Jesus? Igualmente não poderíamos homenagear o indiano Mahatma Gandhi com um churrasco. Ele era vegetariano”.

No seu primeiro aniversário, Jesus estava com os pais no Egito, fugindo de Herodes, o rei de Israel que mandou assassinar todos os meninos com menos de dois anos de idade por temer que o bebê de Maria e José ameaçasse seu trono. O Novo Testamento também não se refere à comida do momento. Entretanto, pode-se deduzir um cardápio simples: pão duro, de grão integral, triturado em moinho de pedra; salada de salsão com azeitona e passas; peixe seco frito, temperado com cominho.

Em Nazaré, terra natal de Maria e José, o vilarejo no qual Jesus passou a maior parte da vida, desde a infância, na volta do Egito, até a idade adulta, a população observava uma dieta simples. Alimentava-se de agrião, aspargo, alcachofra, alho-poró, beterraba, brócolis, cebola, couve, erva-doce, espinafre, gengibre, pepino, repolho, salsão e azeitona; temperava os pratos com sal, alho, cominho, alecrim, gergelim, endro e mel; comia trigo e cevada; fazia molhos e sobremesas com frutas frescas e secas, ameixa, maçã, figo, tâmara ou nozes; tomava leite e saboreava seus derivados, ou seja, iogurte, ricota e queijo; e peixes e aves no dia-a-dia, pois a carne ovina ou bovina era reservada às ocasiões especiais.

Na verdade, a refeição mais importante na vida de Jesus foi a que dividiu com os apóstolos em Jerusalém, antes de sua crucificação. Antevendo a morte, convocou os doze apóstolos para sua última ceia. A cerimônia coincidiu com o Sêder de Pessach, jantar cerimonial no qual os judeus recordam a história do Êxodo e a libertação de Israel, após mais de dois séculos de escravidão no Egito. Portanto, foi realizada na primeira noite da Páscoa hebraica.

Pela ocasião escolhida e o fato de Jesus ser judeu, supõe-se terem sido respeitados os ritos tradicionais. Na última ceia, Jesus predisse a traição de um dos apóstolos, Judas Iscariotes, e instituiu o sacramento da Eucaristia. São Lucas, no capítulo 22, versículos 7 a 20, do seu Evangelho, conta que São Pedro e São João foram incumbidos de organizá-la. Não há referência sobre o endereço no qual transcorreu a derradeira refeição de Jesus. Católicos ortodoxos indicam a casa da mãe de São Marcos, onde agora existe uma igreja.

Na última ceia, os apóstolos saborearam alimentos da liturgia judaica: ervas amargas para relembrar o sofrimento causado pela escravidão do povo hebreu no Egito; pão ázimo, em memória da saída dali; e carne de cordeiro. No livro “2000 Ans de Festins”, lançado pela Éditions de La Martiniére, de Paris, em 1999, a jornalista de origem israelente Ruth Keenan propõe e ensina as prováveis receitas da ceia de Jesus com os apóstolos: peixe em molho agridoce; paleta de cordeiro com ervas, pinoli e frutas secas; salada de aipo e ervas amargas (raiz-forte, chicória, alface); compota de frutas secas ao mel.

A mais famosa representação da derradeira refeição do fundador do cristianismo é o afresco “A Última Ceia”, conservado em uma das paredes do refeitório do Convento de Santa Maria delle Grazie, em Milão, na Itália. Leonardo da Vinci, seu autor, dispunha das pistas do Novo Testamento, mas as desprezou. Além disso, cometeu outras ousadias. O Judas de “A Última Ceia”, por exemplo, parece retratar Girolamo Savonarola (1452-1498), o pregador dominicano que impôs aos habitantes de Florença uma vida quase monacal, foi excomungado e queimado vivo por heresia.

Na mesa pintada no afresco, colocou alimentos renascentistas: enrolados de pão, purê de nabos e rabanadas de enguia, além de sete copos vazios, que conteriam vinho. Entretanto, não podemos reclamar das liberalidades de Leonardo da Vinci. Raros pintores contribuíram com tanta genialidade para uma iconografia católica que há séculos revigora devoções e extasia os amantes da arte.

RECEITA

PALETA DE CORDEIRO
(com acompanhamentos adaptados ao nosso tempo)

INGREDIENTES
.2,5kg (aproximadamente) de paleta de cordeiro
.200g de nozes sem pele picadas
.200g de amêndoas sem pele picadas
.100g de pinoli (sementes do pinheiro-manso)
.200g de tâmaras sem caroço picadas
.2 cebolas raladas
.4 dentes de alho amassados
.3 pedaços de canela em pau
.1 colher (sobremesa) rasa de canela em pó
.100ml de óleo de oliva
.Gengibre em pó a gosto
.Pistilos de açafrão a gosto
.Salsinha picada a gosto
.Tomilho picado a gosto
.Alecrim a gosto
.Sal e pimenta-do-reino moída na hora a gosto
.Batatas, cenouras e pimentões em cubos, coloridos.

PREPARO
1.Com uma faca afiada, faça várias incisões na carne.
2.Numa tigela, misture os ingredientes. Se ficarem muito secos, coloque um pouco de água. Esfregue toda a carne com esses temperos, introduzindo-os também dentro das incisões.
3.Asse a paleta dos dois lados, em forno moderado (180ºC), previamente aquecido, por cerca de 2 horas, pingando um pouco de água durante o cozimento.
4.Passe a carne para uma travessa, sirva-a com os acompanhamentos e o molho (coado) que ficou na assadeira.
Rendimento: 6 porções