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Os novos farofeiros

É só observar o que eles comem na praia: não levam mais o invariável frango com farofa

Por J.A. Dias Lopes Atualizado em 30 jul 2020, 21h04 - Publicado em 10 jan 2017, 11h36

Acabou o frango de panela com farofa. Ele sumiu dos farnéis que as pessoas sem recursos para alugar uma casa ou um quarto de hotel à beira-mar estão levando ao litoral, onde passam o dia e voltam à noite para suas cidades. Isso pelo menos neste verão e em São Paulo. Raríssimas carregam frango de panela com farofa, o prato que lhes deu o apelido divertido.

Antigamente, era a comida invariável dos farofeiros. Mudaram para tentar escapar do bullying? Quem sabe. Ou os tempos são outros? Há também o sub farofeiro local, que tem onde ficar na praia e instala sua parafernália na areia, onde encara jornada de comes e bebes. Entretanto, não é desse que falamos.

De uns tempos para cá, os farofeiros puros-sangues transportam outras comidas para a beira-mar. Traçam sanduíches de pão de forma recheado com atum e maionese de vidro, porque demora a estragar, e também de mortadela; salsichas em conserva, pois não precisam ser aquecidas; cuscuz paulista; biscoito de polvilho embalado em sacos plásticos; milho verde cozido e temperado na hora com manteiga ou margarina – e dê-lhe sal; e ainda bolo seco de supermercado.

Churrasqueira a carvão, para espetinhos de frango ou linguiça, tornou-se utensílio raro. Claro, jamais faltarão ao arsenal do farofeiro o isopor atulhado de gelo de posto de gasolina, as latinhas de cerveja e garrafas long neck estupidamente geladas; água de coco em caixinhas e refrigerantes nas garrafas PET. Sem contar o som bem alto pra animar, às vezes no porta-malas do carro; o cachorro de estimação, que late à toa e corre de um lado para outro; e o guarda-sol para a pele não queimar demais e ficar com cor de camarão.

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É uma pena que o apetitoso frango na panela, frito em pedaços e envolvido na farinha de mandioca grossa, seja trocado por banalidades, muitas das quais industriais. Trata-se de uma iguaria brasileira, especialmente se a ave for caipira. Há também o conhecido frango recheado com farofa, mas não é desse que falamos.

Por sorte, o desprezo ao prato se restringe aos farofeiros. O frango de panela com farofa continua a ser uma das nossas mais estimadas  receitas. Enriquece o farnel dos nordestinos que vivem em São Paulo e viajam em férias à terra natal. No Rio de Janeiro, acompanha pessoas que vão assistir aos ensaios das escolas de samba. Além disso, reveste-se de aura patriótica.

Originária do Sudoeste da Ásia, a galinha doméstica, mãe do frango e mulher do galo, desembarcou no país com os primeiros portugueses. Na carta enviada ao rei lusitano D. Manuel I, o Venturoso, relatando a descoberta do Brasil, Pero Vaz de Caminha, escrivão da armada de Pedro Álvares Cabral, contou que os índios se assustaram ao conhecê-la. “Mostraram-lhes uma galinha, quase tiveram medo dela, e não lhe queriam por a mão”, contou ele. “Depois lhe pegaram, mas como espantados”. A apresentação ocorreu a 24 de abril de 1500, uma sexta-feira.

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A família da galinha: também usada para definições espirituosas
A família da galinha: também usada para definições espirituosas (Handbook os Early Adversiting Art/Divulgação)

A família da galinha virou paixão nacional. Vai à mesa tanto nas casas simples como nas mais faustosas. Quando viveu no Brasil, no início do século 19, D. João VI comia por dia seis frangos inteiros, assados no forno, divididos entre o almoço e o jantar. Saboreava-os com as mãos, lavando-as no final em uma bacia de prata e fazendo o sinal da cruz para agradecer a Deus a benção gustativa.

No mesmo século, nosso D. Pedro II apreciava uma boa canja de galinha ou de macuco, ave sul-americana atualmente em extinção. Curiosamente, sua irmã Francisca de Bragança, que casou com Francisco Fernando de Orléans, Príncipe de Joinville, filho do rei francês Luís Filipe I, preferia a de papagaio. Os moradores de Paris ficaram perplexos quando souberam que ela a pedira para se alimentar  depois de desembarcar na cidade.

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Aliás, o povo brasileiro usa o nome da galinha e dos seus familiares em definições espirituosas. “Soltar a franga” equivale a liberar o comportamento sexual. No futebol, jamais esqueceremos a bola que Waldir Peres deixou passar, no jogo de estréia da Seleção Brasileira de Futebol com a da União Soviética, pela Copa do Mundo de 1982.

Embora fosse um dos nossos melhores goleiros, tomou um gol quase do meio do campo, o primeiro da partida, sem ao menos se abaixar. Foi um “frango”! Graças a Deus, vencemos por 2 a 1. “Frango” é ainda o rapazola ou adolescente. Já o vocábulo “galo” define uma pequena inchação na testa, resultante de pancada. “Galo de rinha” é o homem briguento. “Salgar o galo” significa beber pela primeira vez ou tomar cachaça em jejum.

Quanto à palavra “galinha”, indica a mulher que troca a toda hora de parceiro ou o homem incontrolavelmente namorador. Também é a pessoa covarde ou que sente muita cócega. “Dormir com as galinhas” significa deitar cedo demais. “Quando as galinhas criarem dentes” expressa uma situação que nunca acontecerá. “Pés de galinha” são aquelas rugas no canto dos olhos que atormentam a vaidade feminina.

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A farofa, porém, tem pedigree indígena. Surgiu entre os tupis-guaranis, grupo nativo do Brasil encontrado do sul da Amazônia ao litoral brasileiro, e também no Paraguai. Sua invenção culinária, portanto, antecedeu à colonização do território nacional pelos portugueses. Antropólogos da alimentação sugerem que, para obter um alimento mais gostoso, um tupi-guarani jogou farinha de mandioca no casco ainda quente de uma tartaruga assada, da qual acabara de comer a carne. Estava inventado o prato.

A receita primitiva existe até hoje em rincões da Amazônia e obviamente sua elaboração e consumo são crimes inafiançáveis fiscalizados pelo IBAMA – Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis. Animal ameaçado de extinção, a tartaruga passou a ser protegida por lei.

O prato que ela deu origem com a farinha de mandioca se chama farofa do casco. Mereceu até um verbete no “Dicionário do Folclore Brasileiro” (Global Editora, São Paulo, 2001), de Luís da Câmara Cascudo, mestre supremo do folclore e da etnografia nacionais.

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O nome farofa veio do quimbundo, língua falada pelos bantos de Angola. O mesmo  Câmara Cascudo, no livro “Made in África” (Editora Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, 1965), explica como isso aconteceu. Em princípios do século 16, quando começaram a  sequestrar negros nos atuais territórios de Angola, Benin, Guiné, Moçambique, Nigéria, São Tomé e Príncipe, Senegal, para escravizá-los no Brasil, os portugueses introduziram a mandioca e sua farinha na África.

As populações daquele continente já dispunham de um tipo de farofa. Faziam-na com milhete, denominação de várias espécies cerealíferas plantadas em todo o mundo, para alimentação humana e animal. A farofa de mandioca aportou na África e tomou o seu lugar. Além de mais saborosa, saía de uma planta fácil de cultivar, resistente às adversidades climáticas, de alto valor energético e baixo teor de proteína. Inicialmente, os africanos diziam falofa ou farofia.

Portanto, foram os negros escravizados, desembarcados aqui entre trezentos e quatrocentos anos atrás, que batizaram o prato dos tupis-guaranis. No livro “Magia da Cozinha Brasileira – Para Deuses e Mortais” (Editora Primor, Rio de Janeiro, 1979), o filólogo, crítico literário, tradutor, diplomata, enciclopedista e gastrônomo Antonio Houaiss divide o clã em três categorias:

Na primeira, se encontra a farofa que amolece a farinha de mandioca na água. Pode ser quente ou fria, mais ou menos pastosa ou seca, com tempero refogado ou não. É redundantemente a farofa d’água. A segunda se chama de farofa de manteiga, ingrediente que pode ser substituído por outra gordura animal, azeite doce ou de dendê.

A terceira é a farofa de molho. Como as outras, tem nome explícito. Segundo Houaiss, incorpora o molho de fundo, “cuja quantidade, por ser excessiva, pode ser aproveitada”. A seguir, dá a receita: “Para cada quantidade do molho na frigideira, juntam-se, mexendo bem, duas a quatro (….) de farinha de mandioca”.

A trilogia de farofas se desdobra em um número ilimitado de receitas. Houaiss chegou a essa conclusão depois de ir à casa de um amigo, cujo nome não citou, e provar 83 modalidades da receitas. “E difícil era saber qual a melhor”, comentou.  Se os farofeiros das praias de São Paulo provassem uma dessas receitas excelsas, perderiam o suposto constrangimento. Ficariam orgulhosos do fato de seus antecedentes terem difundido o frango de panela com farofa.

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