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Camuflados pela comida

O embutido delicioso que os judeus de Portugal inventaram, sem carne de porco, para escapar da Santa Inquisição

Por J.A. Dias Lopes Atualizado em 30 jul 2020, 21h03 - Publicado em 6 fev 2017, 15h58

Perseguidos pela Santa Inquisição, o tribunal instalado em Portugal no ano de 1536 – e que por 285 anos investigou, perseguiu, condenou, torturou, castigou, queimou vivas e desterrou milhares de pessoas consideradas bruxas, hereges ou seguidoras de outras religiões que não fosse a católica –, os  judeus lusitanos inventaram um embutido (enchido, segundo os lusitanos)  chamado alheira.

Trata-se de uma iguaria com cerca de 25 milímetros de calibre, em formato de ferradura, contendo uma pasta de ingredientes mistos, embalada em tripa de bovino. Originalmente, levava pão, azeite, gordura animal, e alguns tipos de carne, sobretudo de aves como galinha, marreco e ganso, às vezes de bovino e caça, obviamente exceto a de porco. Temperavam-na com alho (daí no nome) e colorau.

Os judeus rejeitam a carne suína, obedecendo à proibição do Levítico (11.7), terceiro dos cinco livros da Torá, que transmite  os princípios fundamentais do povo de Israel, e também guia os cristãos, pois está incluído na  Bíblia. O texto sagrado, atribuído a Moisés, considera o porco um animal impuro “porque tem a unha fendida, mas não rumina”. Daí a invenção da alheira.

Mirandela, situada em Trás-os-Montes: faz a mais famosa
Mirandela, situada em Trás-os-Montes: faz a mais famosa (Divulgação)

Um édito real (ordem dada incontestável  através de edital afixado em locais públicos) de D. Manuel I, o rei que patrocinou a descoberta do Brasil, publicado em 1496, obrigou os judeus a saírem de Portugal ou se converterem ao catolicismo. Os que não tiveram condições de deixar o território lusitano, submeteram-se à imposição, formando a classe dos cristãos novos. Na maioria das vezes, fizeram isso “só de boca”. Portanto, nem todos viraram católicos. Em público, seguiam a nova fé, batizavam os filhos, iam às missas, porém na intimidade de suas famílias continuavam a observar o judaísmo.

Uma das maneiras da Santa Inquisição descobrir esse judeu camuflado de católico era constatar que não comia carne de porco, a matéria-prima dos embutidos lusitanos. Saboreando alheira, os judeus enganavam os algozes da Santa Inquisição. Simulavam consumir um embutido suíno e salvavam a própria pele. Isso aconteceu no Norte de Portugal, na atual região de Trás-os-Montes e Alto Douro, onde muitos deles se refugiaram, protegidos por um isolamento secular que também assegurou a sobrevivência de suas tradições culturais.

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Hoje, a alheira é um embutido que orgulha a mesa lusitana, sendo consumido no país inteiro. Mudou um pouco a composição. Paradoxalmente, agora incorpora cerca de 18% de carne de porco e uns 42% de aves. Na parte restante vai pão, banha etc. Ainda se apresenta em tripa de bovino. Quando não incorpora  carne de porco, chama-se “alheira de judeu”. Entretanto, quem quiser prová-la mais próxima da receita ancestral terá de visitar algumas das aldeias de Trás-os-Montes.

Em 2011, a Alheira de Mirandela, denominada assim por proceder da cidade homônima, em Trás-os-Montes, foi declarada uma das 7 Maravilhas da Gastronomia de Portugal, após eleição nacional. Dividiu o pódio com o Queijo Serra da Estrela, o Caldo Verde, a Sardinha Assada, o Arroz de Marisco, o Leitão da Bairrada e o Pastel de Belém. É a mais famosa, mas as opiniões dos apreciadores se dividem. Alguns preferem a Alheira de Vinhais, vila pertencente ao Distrito de Bragança, sempre em Trás-os-Montes, mais defumada e de tempero mais acentuado.

O primado da Alheira de Mirandela se deve à localização da cidade. Só há pouco tempo o embutido passou a ser fabricado ali, em unidades industriais. Assim como o Vinho do Porto, que é feito nas margens do rio Douro, mas tem o nome da cidade que deu o nome a Portugal, a Alheira de Mirandela procedia antigamente do interior de Trás-os-Montes para ser comercializada ou enviada a outros mercados.

Frita-se, grelha-se ou se assa a alheira, sempre em fogo brando. Em Trás-os-Montes, saboreiam-na como petisco. Nesse caso, é grelhada e depois cortada em pedaços; ou a consomem na condição de prato principal, feita em frigideira, cortada a seguir para que sua gordura escorra de dentro e termine de cozinhá-la.

“Quando arrebenta (…), é para mim um prazer, pois aquela massa que se solta vai ficar estaladiça e constitui o melhor da alheira”, afirma o gastrônomo, cronista e escritor gastronômico transmontano Virgilio Nogueiro Gomes, autor do “Tratado do Petisco e das Grandes Maravilhas da Cozinha Nacional” (Mercador Editora, Lisboa, 2013).

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Acompanham grelos – os brotos da couve ou as folhas do nabo pouco crescido – cozidos ou salteados em azeite e alho. Todos os restaurantes tradicionais de Portugal a servem na entrada da refeição, às vezes acompanhada de batata frita ou cozida, ovo estrelado, salada de alface e tomate ou legumes da época.

O mesmo acontece no Brasil, pois existe  produção nacional. Acha-se alheira in natura no Mercado Municipal de São Paulo, mais conhecido como Mercadão, situado na Rua Cantareira, 306, Centro; e, já preparada, cortada em pedaços, nos seus boxes, no Elidio Bar, Salada Paulistana e Terra Mar, servida com fatias de pão.

Alguns historiadores lusitanos colocam em dúvida a invenção judaica do embutido, suspeitando tratar-se de lenda. Sustentam que existe há mais tempo. Os judeus teriam apenas começado a produzir alheira sem carne de porco. Fabricavam-na junto com outros embutidos suínos, para disfarçar, que colocavam à venda, mas se alimentavam exclusivamente com ela.

Entretanto, a contestação dos intelectuais não consegue calar a voz da tradição popular, que avaliza a versão judaica. Segundo esses céticos, a alheira surgiu pela mesma razão de outros embutidos e linguiças do mundo: para conservar as carnes dos animais abatidos no inverno por grupos primitivos de seres humanos.

Mesmo que tivessem razão, merecem a lição dada pelo editor do jornal de uma cidadezinha do Oeste americano ao senador vivido pelo ator James Stewart, no filme “O Homem Que Matou o Facínora”, de 1962, do cineasta John Ford, conhecido pelos seus westerns. O jornalista pronunciou uma frase antológica ao ouvir do político a confissão de não ter sido ele, ao contrário da crença, quem matou o bandido aterrorizador da região: “Quando a lenda antecede os fatos, publique-se a lenda.”

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