A generosidade da comida
Destruída pelo terremoto, a cidadezinha italiana de Amatrice terá ajuda do prato de massa que a homenageia. Saiba a origem da receita do molho e como prepará-la
A cidadezinha italiana de Amatrice, de apenas 2.803 habitantes, localizada no Lácio, a região de Roma, preparava-se para o 50ª festival anual da receita de cozinha que a tornou conhecida internacionalmente. O evento seria realizado três dias depois.
Mas o terremoto que a arrasou na madrugada de 24 de agosto eliminou a possibilidade de festa. A tradição gastronômica local se orgulha do spaghetti all’amatriciana, um dos pratos de massa mais apreciados no mundo.
Quem teve o privilégio de visitar Amatrice antes da tragédia conheceu o seu casario medieval, a suas cem igrejas, a deslumbrante paisagem que a circunda e o orgulho cívico da população com a receita. O molho leva guanciale (bochecha de porco defumada na lenha), tomate, pecorino (queijo de ovelha), azeite, cebola, vinho branco, peperoncino (variedade de pimenta) e sal.
Surgiu entre os pastores de ovelha, numerosos no passado, que percorriam uma acidentada topografia. Amatrice já foi conhecida pelos excelentes cozinheiros, chamados na Renascença para trabalhar em Roma, inclusive na corte pontifícia.
O molho descende de outra receita clássica do Lácio: a massa alla gricia, também denominada cacio e unto. Utiliza os mesmos ingredientes da receita all’amatriciana, exceto o tomate e a cebola. Surge, então, outra polêmica entre os gastrônomos italianos. Se a massa se chama alla gricia, originou-se na vizinha comuna de Accumoli, antigamente Grisciano di Accumoli, hoje com pouco mais de 724 habitantes. Vizinha de Amatrice, foi atingida pelo mesmo abalo sísmico. Portanto, all’amatriciana, segundo uma interpretação, “constitui nome secundário”.
Os romanos também querem a sua parte. Para começar, chamam a receita de modo diferente: matriciana (dialeto romanesco), em vez de all’amatriciana. Atribuem sua criação e aprimoramento, com a posterior adição do tomate, a um cozinheiro do interior do Lácio, instalado na cidade. Ele teria batizado a receita em homenagem à terra natal.
Já o grande comilão e ator Aldo Fabrizi (1905-1990), consagrado pelo papel de Don Pietro, o heróico sacerdote fuzilado pelos nazistas diante das crianças de sua paróquia, no filme “Roma, Cidade Aberta” (1945), de Roberto Rosselini, defendia uma tese autóctone. Romano de nascimento, sustentava que até o nome era da capital italiana. Derivaria de guanciale, produto suíno ali conhecido no passado por matrice.
Mas os defensores do primado romano também se dividem. Não chegam a um consenso sobre o tipo de tomate incorporado ao prato. Aldo Fabrizi recomendava o San Marzano, cilíndrico, sumarento e doce, acrescentado sem a pele e as sementes; Secondino Freda, um dos fundadores da Accademia Italiana della Cucina, aconselhava o Casalino, cheio de gomos, aquoso e levemente acre. Além disso, alguns julgam fundamental a cebola, utilizada para fritar o guaciale; outros a recusam. ]
Recentemente, o chef Carlo Cracco, que além de cozinheiro novidadeiro e agitador gastronômico é jurado do programa televisivo Master Chef Itália, entrou em rota de colisão com os defensores da autenticidade do molho, ao revelar o segredo da sua receita: além de cebola, inclui alho com casca ao refogar o guanciale.
Há finalmente a questão do tipo de massa. Em Amatrice, prefere-se spaghetti. Em Roma, bucatini (nome dado no Lazio aos spaghetti mais grossos, furados no meio). Outros vão de rigatoni. Sob evidente influência romana, a “Enciclopedia Illustrata Della Gastronomia” (Selezione dal Reader’s Digest, Milão, 2000), firma ser “rigorosamente obrigatório o uso dos bucatini” ou dos perciatelli (semelhantes aos bucatini, mas típicos de Nápoles)”.
O terremoto provocou uma trégua nas discussões. Os restaurantes de cozinha italiana no mundo socorrerão a comuna de Amatrice com uma parte do que cobrarem pelo prato em sua homenagem. Na própria Itália, centenas de osterie, trattorie e ristoranti se comprometeram a doar dois euros para cada molho all’amatriciana que venderem sobre a massa.
Trata-se de uma prova de que ainda se pode reverter a brutalidade do nosso tempo. Um prodígio da natureza humana é fazer com que, nessas horas, a comida também seja generosa.
SPAGHETTI ALL’AMATRICIANA
Rende 4 porções
INGREDIENTES
- 500g de spaghetti (ou bucatini)
- 500g de tomates
- 100g de guanciale
- 2 colheres (sopa) de azeite extravirgem de oliva
- 1 cebola pequena picada
- 1/2 copo de vinho branco seco
- 100g de queijo pecorino
- Peperoncino bem picadinho (na falta, use pimenta cumari) a gosto
- Sal a gosto
PREPARO
1. Mergulhe os tomates em água fervente, por alguns minutos e, a seguir, em água gelada. Puxe a pele, retire as sementes e filete-os.
2. Corte o guanciale em cubos e frite-os em azeite, cebola e peperoncino até dourarem.
3. Banhe com o vinho, deixe evaporar, acrescente os tomates e complete o cozimento em fogo baixo.
4. Cozinhe a massa em abundante água fervente com sal e escorra-a al dente. Polvilhe com metade do pecorino ralado, cubra com o molho bem quente, misture e finalize com o pecorino que sobrou.
5. Sirva imediatamente.