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A favorita do imperador

A vida desvairada e a mesa generosa da amante de D. Pedro I, Marquesa de Santos, que morreu há 150 anos.

Por J.A. Dias Lopes Atualizado em 30 jul 2020, 20h46 - Publicado em 4 set 2017, 11h46

O primeiro imperador do Brasil e também rei de Portugal e Algarves – em nosso país D. Pedro I, no solo lusitano D. Pedro IV – era homem impulsivo e fogoso. Nascido em 1798 e falecido em 1834, no mesmo quarto de um palácio dos arredores de Lisboa, casou duas vezes e traiu sem piedade as duas mulheres. Teve tantas amantes em seus 36 anos de vida que, segundo os mexericos da época, não daria para  contar. O bom humor carioca fazia troça, brincando que os nobres e ricos escondiam suas filhas quando Dom Pedro I passava na rua.

Ele cortejava mulheres de todas as condições sociais e etnias, solteiras ou casadas, jovens ou maduras, sem disfarçar os envolvimentos. O povo dizia que D. Pedro I tinha três paixões, as mulheres, os cavalos e a música, a ponto de tocar bem o piano e quase todos os instrumentos. Compôs o Hino da Independência do Brasil junto com Evaristo da Veiga: “Já podeis, da Pátria filhos/Ver contente a mãe gentil/Já raiou a liberdade/No horizonte do Brasil”.

Pelos cálculos dos biógrafos, os dois casamentos e os relacionamentos extraconjugais de D. Pedro I resultaram em dezoito filhos. Até prova em contrário, o primeiro rebento nasceu em 1818, em parceria com Noémi Thierry, atriz e dançarina francesa; o último seria da monja portuguesa Ana Augusta e veio ao mundo em 1833. Uma das amantes, porém, arrebatou-lhe o coração e, não fossem as implicações políticas e críticas moralistas, ele a teria coroado rainha-consorte após a morte da primeira mulher, D. Maria Leopoldina, arquiduquesa da Áustria (1797-1826), com a qual, aliás, teve sete filhos.

A favorita extraconjugal foi a paulistana Domitila de Castro Canto e Melo (1797-1867), a quem D. Pedro I conferiu o título nobiliárquico de Marquesa de Santos, embora ela jamais tenha estado naquela cidade. Chamava-a provocantemente de Titília nas correspondências entre ambos, que assinava como Demonão ou Fogo Foguinho. Ela não se notabilizava pela beleza, até porque o rosto era fino e comprido. Mas tinha a pele clara, os cabelos castanhos, os olhos verde-escuros e uma sensualidade que fisgava os homens.

Em sete anos de relacionamento, Titília e Demonão geraram cinco filhos. A Marquesa de Santos também casou duas vezes. A primeira foi com o alferes Felício Pinto Coelho de Mendonça, oficial do 2º Esquadrão do Corpo de Dragões de Vila Rica, Minas Gerais. Já separada do marido, homem ciumento e violento, que a esfaqueou por suposta infidelidade, e com três filhos dele, encontrou D. Pedro I em São Paulo.

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Conheceram-se em 1822, às vésperas do então Príncipe Regente proclamar a Independência do Brasil às margens do riacho Ipiranga, na capital paulista. Em 1833, depois de romper com Demonão, Titília se uniu ao Brigadeiro Rafael Tobias de Aguiar, um dos chefes da Revolução Liberal de São Paulo, a quem deu seis filhos. O casal casou oficialmente em 1842 e foi morar em um palacete da antiga Rua do Carmo, agora Rua Roberto Simonsen, perto do Pátio do Colégio, no bairro da Sé.  

 Ali continuou a ter vida boa, até porque o marido era rico e influente. Tornou-se senhora respeitabilíssima, fez obras de caridade, promoveu saraus e reuniões sociais em casa, entre recepções e bailes, andou pela cidade em um coche (carroagem) brasonado. Esbanjou sinais de riqueza em 1858, no jantar para festejar a formatura em Direito, pela Faculdade do Largo de São Francisco, de um dos seus filhos com o Brigadeiro Tobias de Aguiar.

Dizem que usou um faqueiro com seu monograma encimado por uma coroa, em prata de lei dourada, importado da França, para 95 pessoas e pesando, sem a caixa, 22,9 quilos; que serviu a comida em porcelanas inglesas e alemãs; que exibiu uma baixela completa em ouro e um serviço de cristal Baccarat azul cobalto. Como sempre, sentou-se em uma cadeira especial denominada “Trono da Marquesa”.

 Fragmentos do romance desvairado entre  D. Pedro I e a Marquesa de Santos têm sido revividos em “Novo Mundo”, a 89ª “Novela das Seis” da Rede Globo, escrita por Thereza Falcão e Alessandro Marson, com o ator Caio de Castro no papel do Imperador do Brasil e a atriz Agatha Moreira representando a amante. O enredo, porém, mistura personagens e situações reais com outras completamente imaginárias. Portanto, quem quiser conhecer a verdade histórica deve procurá-la nos livros. Há vários.

 O mais popular é “A Marquesa de Santos”, romance histórico lançado em 1925 pelo escritor Paulo Setúbal, best-seller brasileiro da década de 1920. Traduzido para meia dúzia de línguas, virou filme e minissérie na TV. Reeditado em 2009 pela Geração Editorial, de São Paulo, continua a vender bem. Outro livro, publicado  em 2011, pela mesma editora, teve como autor o historiador Paulo Rezzutti. Intitula-se “Titília e Demonão” e contém cartas inéditas de D. Pedro I à Marquesa de Santos. Pelo mesmo selo editorial, Rezzutti lançou em 2013 o interssante “Domitila – A Verdadeira História da Marquesa e Santos”.

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 Envolvendo-se com Titília, Demonão a levou  para o Rio de Janeiro, onde a instalou em um sobrado confortável do bairro do Estácio e, a seguir, em um solar perto da Quinta da Boa Vista, onde hoje funciona o Museu do Primeirio Reinado. O romance humilhou D. Maria Leopoldina, até porque a amante foi inicialmente  nomeada Dama Camarista da imperatriz. Escandalizou a sociedade carioca pelo fato do caso ser do conhecimento público, fofocou-se até que o casal tomou banho pelado na praia do Morro de São Paulo, em viagem à Bahia. A amante chegou a ser destratada por uma baronesa ao tentar assistir missa na tribuna reservada às damas do paço, na Capela Imperial.

Elevada a Viscondessa de Santos e recebendo por último depois a honraria maior de Marquesa de Santos, Titília explorou a influência junto a D. Pedro I e se envolveu na política, demitindo e prendendo desafetos, usando o relacionamento para subir na vida, obtendo títulos e beneficiando a própria família. Qualquer semelhança com circunstâncias da atualidade brasileira não parece mera coincidência.

Aliada a Francisco Gomes da Silva, o Chalaça (1791-1852), amigo, confidente e alcoviteiro de D. Pedro I, a Marquesa de Santos conspirou contra o primeiro-ministro José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), o “Patriarca da Independência”, e induziu D. Pedro I a dissolver a Assembléia Constituinte em 1823. Poucas muheres exerceram tanta influência nos destinos do Brasil. Mas caiu em desgraça por tentar matar a própria irmã traidora, Maria Benedita de Castro Canto e Melo (1792-1857), Baronesa de Sorocaba, mais uma amante do imperador e mãe de outro filho dele.

Com a morte de D. Maria Leopoldina, primeira mulher de D. Pedro I, a Marquesa de Santos sonhou em ocupar o trono do Brasil. Entetanto, o imperador frustrou seu plano. Preferiu casar com D. Amélia de Leuchtenberg (1812-1873), filha do enteado de Napoleão Bonaparte. Com ela teve uma menina. Repudiada e com o coração em pedaços, a Marquesa de Santos deixou o Rio de Janeiro e  retornou a São Paulo, onde acabou casando com o Brigadeiro Tobias de Aguiar.

As referências aos alimentos diários em sua casa paulistana são escassas, mas eram sem dúvida generosos. No livro “Domitila – A Verdadeira História da Marquesa de Santos”, Rezzutti diz que era comum haver na mesa da cidade receitas de feijão, toucinho fresco, linguiça defumada, torresmo, carne de porco, farinha e couve, “que seria bastante amaldiçoada pelo poeta Álvares de Azevedo anos mais tarde ao vê-la até no café da manhã”. Esses ingredientes serviam para fazer o Virado à Paulista, um dos pratos obrigatórios da cozinha da época. Há tempos estava em moda. Não por acaso, alimentou D. Pedro I na viagem que fez a cavalo do Rio de Janeiro a São Paulo, quando proclamou a Independência do Brasil e se apaixonou pela Marquesa de Santos.

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O Virado à Paulista surgiu na época colonial, para alimentar os bandeirantes, ou seja, os protagonistas das entradas, bandeiras e monções. Em suas expedições, eles levavam farnéis repletos de feijão cozido, habitualmente sem sal, para não endurecer, farinha de milho (a de mandioca só começou a ser produzida em escala apreciável em São Paulo no século XVIII), carne-seca e toucinho. Com o chacoalhar da viagem, os ingredientes ficavam virados ou revirados (daí o virado). Comiam frio ou aquecido.

Hoje, a receita manda refogar o feijão já cozido em cebola, alho e gordura; acrescenta-se sal e um pouco do próprio caldo do feijão ou de água; mexe-se com farinha de milho ou de mandioca; serve-se acompanhado de bisteca ou costeleta suína frita; linguiça frita; banana empanada e frita; ovo estrelado, de preferência com a gema mole; couve cortada em tiras e refogada na gordura; torresmo crocante feito na hora; arroz branco e farofa. Trata-se realmente de uma refeição completa.

No tempo da Marquesa de Santos, frutas como a laranja se harmonizavam com pratos salgados tipo Virado à Paulista. “A mistura agridoce era uma constante na mesa de São Paulo, onde abóbora acompanhava a carne de porco e a polivalente banana, frita com canela e açúcar, virava sobremesa; crua, misturavam com o feijão”, acrescenta Rezzutti. Quando as famílias iam assistir espetáculos no Teatro da Ópera, no Pátio do Colégio, escravos levavam cestas de comida contendo frango assado, empanadas (no formato de pastelão) e cuscuz (glória universal reinterpretada pela cozinha paulista).

A Marquesa de Santos morreu há exatamente 150 anos e foi sepultada na presença do presidente da Província de São Paulo, Joaquim Saldanha Marinho (1816-1895) e de outras autoridades. Seus restos se encontram no Cemitério da Consolação. No alto do mausoléu, colocou-se a figura de um anjinho de ar ingênuo, que lembraria a figura do Cupido, deus do amor entre os romanos. Encarnava a paixão em todas as suas manifestações. Estaria ali por ironia ou fatalidade?

 

VIRADO À PAULISTA 

(RENDE 6 PORÇÕES)

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VIRADO À PAULISTA
Virado à Paulista: receita bandeirante preparada na época da Marquesa de Santos (Wikimedia Commons/Divulgação)

INGREDIENTES

VIRADO

.3 colheres (sopa) de farinha de milho

.1 colher (sopa) de farinha de mandioca

.4 conchas (grandes) de feijão cozido com o caldo

.50g de bacon cortado em cubinhos

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.3 dentes de alho picados

.1 cebola (pequena) bem picada

.Pimenta-do-reino moída na hora a gosto

. Sal (se necessário)

ACOMPANHAMENTOS

.6 bistequinhas de porco grelhadas

.3 unidades de linguiça toscana fritas

.2 maços de couve cortados finamente e passados  em óleo, na frigideira, com uma pitada de sal

.6 ovos estrelados em um pouco de óleo e uma pitada de sal (cuide para a gema ficar mole e as claras cozidas)

.100g de tiras de bacon fritas (ou torresmo)

.Arroz branco

PREPARO

1.Misture as duas farinhas e umedeça-as um pouco com as mãos molhadas. Reserve.

2. No liquidificador, bata metade do feijão cozido com o caldo. Reserve a outra metade com os grãos inteiros.

3.Em uma panela, frite o bacon até dourar, adicione o alho e deixe-o murchar. Em seguida, refogue a cebola.

4.Na mesma panela,  agregue o feijão batido e a outra metade com os grãos inteiros. Deixe ferver e vá adicionando, aos poucos, as farinhas, mexendo sem parar, até dar o ponto de pasta bem mole (depois de amornar, a pasta engrossa muito).

5. Tempere com pimenta-do-reino e ajuste o sal, se necessário. Disponha os ingredientes do acompanhamento e sirva imediatamente.

Receita da chef Mara Salles, de São Paulo, SP.

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