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Por Leandro Narloch
Uma visão politicamente incorreta da história, ciência e economia
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O mito do “trabalho análogo à escravidão”

A maioria das operações de combate ao trabalho escravo não "libertam" ou "resgatam" ninguém, não ajudam os trabalhadores pobres e consideram escravos gente que ganha muito mais que a média dos brasileiros

Por Leandro Narloch
Atualizado em 30 jul 2020, 22h26 - Publicado em 23 jun 2016, 11h19

Mais uma grife de roupas foi acusada de utilizar trabalho escravo no Brasil. Segundo uma reportagem da BBC publicada nesta segunda-feira, auditores do Ministério do Trabalho flagraram cinco bolivianos, entre eles uma adolescente de 14 anos, mantidos como escravos numa oficina na zona leste de São Paulo que produzia para a grife Brooksfield.

Infelizmente a BBC só reproduziu a desinformação que ativistas do combate ao trabalho escravo costumam difundir sobre o assunto. Abaixo, mostro seis esclarecimentos que a reportagem poderia ter feito. O leitor me desculpe o tamanho do texto – o assunto é relevante e merece ser explicado em detalhe.

1. Não é escravidão

No caso desta semana e na maioria dos que vão aos jornais, a situação flagrada pelos fiscais não tinha nada do que o povo, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) ou as leis da maioria dos países entendem por escravidão. Não havia pessoas acorrentadas, ameaçadas, trabalhando para pagar uma dívida com os patrões ou para recuperar um documento.

Por que, então, dizem que é trabalho escravo? No Brasil, uma mudança no Código Penal afrouxou enormemente o conceito de trabalho escravo. Passou a incluir a jornada exaustiva e condições degradantes como critérios para caracterização.

Parece um detalhe, mas a mudança na lei juntou crimes diferentes no mesmo balaio. Patrões que ofereciam alojamentos sem a distância adequada entre as camas passaram a responder pelo mesmo crime que quem torturava os trabalhadores com ferro de marcar gado ou os mantinha em cativeiro.

A própria OIT esclarece, num relatório de 2005, que não se deve confundir trabalho ruim com escravidão. “O trabalho forçado não pode simplesmente ser equiparado a baixos salários ou a más condições de trabalho”, diz o relatório. “Tampouco cobre situações de mera necessidade econômica, por exemplo, quando um trabalhador não tem condições de deixar um posto de trabalho devido à escassez, real ou suposta, de alternativas de emprego.”

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Os bolivianos que produziam para a Brooksfield foram considerados escravos porque não tinham carteira assinada ou férias e, segundo a BBC, “trabalhavam e dormiam com suas famílias em ambientes com cheiro forte, onde os locais em que ficavam os vasos sanitários não tinham porta e camas eram separadas de máquinas de costura por placas de madeira e plástico”. Era trabalho precário, mas não escravidão.

2. Há “escravos” que ganham R$ 5 mil por mês

Como cabe ao auditor do trabalho decidir o que é trabalho escravo, há interpretações das mais extravagantes e ideológicas.

Em 2013, a fiscalização encontrou vinte funcionários de uma construtora de Belo Horizonte que tinham registro na carteira, recebiam horas-extras e adicionais de produção. Um pedreiro disse que ganhava 5 mil por mês. Como não havia lençóis nos beliches do alojamento e os banheiros estavam sujos, o fiscal enquadrou a construtora como escravista.

O alojamento era, de fato, precário, mas muitos dos trabalhadores poderiam achar que a remuneração compensava. Um salário de 5 mil reais, afinal, colocava o funcionário entre os 20% de brasileiros mais ricos daquele ano. Como revelou a revista Exame, casos assim são comuns.

No episódio desta semana, os imigrantes ganhavam 6 reais por peça produzida. Se costuravam duas peças por hora (provavelmente produziam muito mais), ganhariam 12 reais por hora, 96 reais por jornada de oito horas, ou 2100 reais por mês. Isso é mais do que ganham 72% dos brasileiros, que sobrevivem com até dois salários mínimos.

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3. Não há “resgate” ou “libertação” de trabalhadores

O mito do “trabalho análogo à escravidão” vem sendo cultivado por auditores do trabalho, procuradores, jornalistas e ativistas bem-intencionados. Eles fazem questão de esclarecer que a servidão moderna se define por condições precárias de trabalho e tem pouco da escravidão tradicional. Mas utilizam termos e imagens que só fazem sentido quando se referem à restrição da liberdade – como imagens de correntes e termos como “resgate” ou “libertação”.

Imagem da campanha de combate ao trabalho escravo, divulgada pela Secretaria de Direitos Humanos.

Imagem da campanha de combate ao trabalho escravo, divulgada pela Secretaria de Direitos Humanos.

Os trabalhadores costumam considerar um absurdo serem chamados de escravos. Sem ninguém pedir, os fiscais quebram contratos de trabalho, calculam multas enormes para as empresas e mandam os trabalhadores para hotéis ou de volta para suas cidades de origem.

“O primeiro contato com a vítima geralmente é de resistência. Ela não se enxerga como trabalhador forçado e se incomoda com o rótulo”, me disse, no ano passado, Luiz Machado, coordenador do Programa de Combate ao Trabalho Forçado da OIT. “Quando explicamos as violações dos direitos trabalhistas, eles ficam agradecidos, pois ganham pagamentos de direitos, seguro-desemprego especial para resgatados e prioridade na fila do Bolsa Família.

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4. As operações não ajudam os trabalhadores

Quando a indenização acaba, os “escravos libertados” descobrem que os fiscais os transformaram em desempregados dependentes de programas assistenciais. Precisam começar tudo de novo e sair à procura de um emprego. Geralmente encontram trabalhos bem parecidos com aqueles dos quais foram “resgatados”.

“Quando a polícia vai embora, os bolivianos vão para outras oficinas onde a condição é a mesma”, me contou, numa entrevista, o boliviano Luis Vásquez, líder da comunidade boliviana em São Paulo.

Os próprios ativistas admitem o problema da reescravização. “O trabalhador volta para casa com três meses de seguro-desemprego no bolso, mais verbas rescisórias, mas assim que o dinheiro acaba, ele volta a migrar e acaba escravizado de novo”, disse, em outra reportagem da BBC, o fundador da ONG Repórter Brasil, Leonardo Sakamoto.

5. As operações eliminam alternativas de quem já tem poucas

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Numa coisa os ativistas do combate ao trabalho degradante estão certos: milhões de pessoas têm empregos terríveis no Brasil. Trabalham amontoadas em cômodos sem janelas; cumprem uma jornada tão alta que mal veem a família. Diante de situações assim, tudo o que não se deve fazer é diminuir as opções disponíveis a eles.

O que prejudica o trabalhador não é a opção de trabalho que ele encontra, e sim a falta de opções. Os operários das pequenas oficinas de roupas da zona leste de São Paulo se submetem a condições ruins porque aquela é a melhor alternativa de que dispõem. O que os torna vulneráveis não é a empresa que os contratou, mas a ausência de mais empresas que os contratem.

E o que as operações de combate ao trabalho escravo fazem é diminuir ainda mais essas opções. “Quando a Polícia Federal aparece, dá a impressão de que vai prender o Fernandinho Beira-Mar”, diz o boliviano Luiz Vásquez. “Um monte de viaturas e policiais para prender o coitado do dono da oficina. Ele é multado por tudo o que você pode imaginar. Essa história tem levado muitos empreendedores à falência.”

Não é um grande incentivo à abertura de fábricas no Brasil ter a possibilidade de ver a marca manchada por falsas acusações de trabalho escravo. As bem-intencionadas operações prejudicam a segurança jurídica e dão um empurrão a mais para fábricas se mudarem para a China ou o Paraguai. Com menos vagas à disposição no Brasil, os trabalhadores ficam ainda mais vulneráveis.

Quem realmente se preocupa com os pobres precisa, pelo amor de Deus, evitar que as empresas tenham medo de contratar ou subcontratar trabalhadores no Brasil. Ações menos sensacionalistas, como criar um pacto entre as oficinas para seguirem condições mínimas, sob pena de multa, ajudariam muito mais do que aterrorizar grifes internacionais interessadas em produzir no Brasil.

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Outra opção é ajudar os imigrantes a encontrar vagas melhores e ter documentação para se candidatar a elas. Em São Paulo, o Ministério Público do Trabalhou fez um excelente trabalho ao criar um centro onde os imigrantes podem regularizar a residência no Brasil, tirar carteira de trabalho e abrir uma conta corrente. Documentados, ficam aptos a trabalhos menos precários.

“Em diversos países e momentos da história, o subemprego foi o meio pelo qual as minorias, os migrantes e os menos favorecidos entraram no mercado de trabalho e começaram a ascender socialmente”, diz o cientista político Diogo Costa. “Proibir o emprego ruim acaba funcionando como uma barreira de exclusão dos menos qualificados.”

6. Coibir as más condições é impor preferências da elite aos trabalhadores pobres

Imagine que você acabou de se mudar para um país estranho e está sem dinheiro, sem qualificação ou mesmo conhecimento da língua local – e ainda tem três filhos famintos nas costas. De repente aparecem duas opções de trabalho em oficinas de costura.

A primeira oficina, ensolarada e espaçosa, oferece um salário de 10 reais por hora. A segunda, sem janelas e com uma jornada maior, paga 12 reais. Na hora do aperto, você não se dará ao luxo de perder 20% da remuneração. Como quer acumular o máximo possível e voltar para o seu país, você trabalharia mais, muito mais que oito horas por dia.

O combate ao trabalho degradante se baseia na ideia de que as condições ruins são fruto da escolha dos patrões. Mas a escolha não é só deles. Ao decidir ingressar num emprego, uma pessoa avalia todos os tipos de compensação – o salário, o conforto, a jornada. Quem ganha bem pode se dar ao luxo de descontar parte do salário em conforto e jornada menor. Mas se a renda e a produtividade são baixas, e a melhor alternativa de trabalho não é o suficiente para pagar as contas, provavelmente ele abrirá mão do conforto para extrair o máximo da remuneração em forma de salário.

“Isso significa que a combinação de compensações é determinada pelas preferências dos empregados (até o limite da sua produtividade), e não pelas preferências de corporações multinacionais ou empresas terceirizadas”, diz o economista Benjamin Powell, autor do livro Out of Poverty: Sweatshops in the Global Economy.

Powell comprovou essa opção entrevistando operários da Guatemala. Ele conversou justamente com quem trabalhava em fábricas de roupa que motivaram escândalos de trabalho degradante, em reportagens da TV americana. Descobriu que quase todos os trabalhadores não topariam trocar parte do salário por melhores condições:

Você aceitaria ter um salário menor se o seu empregador…
SIM NÃO
tornasse as condições de trabalho mais agradáveis? 8,6% 91,4%
reduzisse o número de horas de trabalho? 10% 90%
aumentasse o horário de almoço? 4,3% 95,7%
fornecesse plano de saúde? 14,3% 85,7%
desse férias remuneradas? 18,6% 81,4%

 

O ensaísta Nassim Nicholas Taleb chama de “filantropia de araque” a atividade de “ajudar as pessoas de uma forma visível e sensacional, sem levar em conta o cemitério oculto de consequências invisíveis”. O exemplo preferido de Taleb são as causas trabalhistas. “Você nota as pessoas cujos empregos estão mais seguros e atribui benefícios sociais a essas medidas. Você não percebe o efeito naqueles que ficarão desempregados, já que as medidas vão reduzir a oferta de empregos. Em alguns casos, as consequências positivas de uma ação vão beneficiar imediatamente os políticos e os humanitários de araque, enquanto as negativas levarão um bom tempo para aparecer – e talvez nunca sejam perceptíveis.” Não há definição melhor para o combate ao “trabalho análogo à escravidão” no Brasil.

@lnarloch

*Para quem se interessar, dedico a este tema um capítulo do Guia Politicamente Incorreto da Economia Brasileira.

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