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Valentina de Botas: Negligente com a língua e o país, Dilma Rousseff inaugurou o populismo de gênero

A essa farsante, não basta ser presidente, isso qualquer uma pode ser: ela é 'presidenta”

Por Augusto Nunes Atualizado em 30 jul 2020, 22h03 - Publicado em 21 ago 2016, 10h19

Língua é mais do que dicionário e, ao contrário do que diz o senso comum, ele é submetido por ela. Não sou linguista como o leitor que veio ensinar o saber infértil dele, sou somente formada em Linguística, o que não é suficiente para me fazer linguista. Mas me lembro das aulas de Lexicografia e Lexicologia, na USP, em que a grande e querida mestra Maria Aparecida Barbosa esclarecia que os lexicógrafos coletam na fala viva, aquela em uso, o conjunto lexicológico que povoa o dicionário.

A lexicografia, belíssima ciência rigorosa e complexa com epistemologia e objeto próprios, não inventa nem impõe o léxico: ela o revela encarcerado e inerte na exatidão frígida do dicionário. Um linguista que preste está consciente de que é preciso tirar as palavras dessa assepsia e sujá-las com o humano, deixando-as livres na língua para, só então, avaliar a adequação e inadequação delas.

Para satisfação do leitor que não aprendeu nada com o saber, “presidenta” existe, o vocábulo embolorado jaz em qualquer dicionário da língua portuguesa; ninguém negou isso e o linguista sabujo supor que um jornalista com 40 anos de textos perfeitos ou que todos os incontáveis leitores dele ignoram isso não só rasteja entre patética sonsice e tristonha arrogância, mas também entre a chatice e o ridículo. A questão nunca foi de correção lexical, mas de mistificação, prática adorada por todo governante populista e autoritário.

O candidato a linguista oficial do reino extinto afirmou que “falo como linguista”; não, lamento, mas estudei alguns dos maiores e melhores linguistas brasileiros, li por dever e prazer linhagens de linguistas, e nenhum dissocia a correção no uso de uma palavra do uso dessa palavra – a liberdade que ela respira na língua submetida ao contexto, circunstâncias, motivações, afetos, razões, etc., do falante.

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Nessa perspectiva, o lexicalmente correto “presidenta” é usado por Dilma Rousseff para inaugurar o populismo de gênero; a mulherzinha negligente com a língua e o país se valeu do insuportável politicamente que fantasia de assertividade o que é só canalhice – felizmente, esse assédio ao pensamento surgiu depois da invenção do humor, do sexo, do amor e da literatura ou seríamos uma espécie ainda mais tristonha no que temos de tristes – para adotar o vocábulo extemporâneo como mais uma forma de desviar a atenção do embuste real e grotesco em que se configurou enquanto construía uma projeção mítica e mistificada de si mesma.

À combatente de uma ditadura para instaurar outra; à supergerente que passava as madrugadas examinando projetos, mas alega que não sabia dos detalhes de Pasadena; à mulher que verga, mas não quebra porque é mais divertido quebrar um país; à governante que defendia o diálogo com o Estado Islâmico, mas não falava com o Congresso; a essa farsante, enfim, não basta ser presidente, isso qualquer um ou uma pode ser: ela é “presidenta”.

Em junho de 2013, num evento da CUT no Rio Grande do Sul, Dilma declarou que tinha nascido em todos os estados da federação e que “uma presidente tem de ser nascida e criada em todos os estados da Federação”. Claro, sabemos que isso é uma estultice tão colossal que nem chega a ser mais uma mentira da usina lulopetista, mesmo Dilma e o PT sabem que sabemos. Mas e daí? A vigarice desse discurso aposta não na mentira de partida, mas na de chegada: na resultante do extrato das falas de Dilma que vão preenchendo a estrutura mistificadora tão bem-sucedida com o jeca.  Assim é a máquina de mentira que consegue parir uma Dilma em cada estado, costurando esse ser grotesco pan/suprabrasileiro.

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Era a metástase do cinismo petista replicando a mistificação, a estrutura que forjou o perfil soteriológico do líder deles. Assim como o jeca, revestido da mitologia que inventou um passado para ele, Dilma ganhou um projeto para a própria figura mítica. Portanto, nascer em todos os estados brasileiros atribui-lhe uma espécie de ubiquidade ontológica aristotélica, como se (e apesar de), tendo cada uma das naturalidades brasileiras, as 26 particularidades fizessem da presidente o ser cuja natureza fosse a mais genérica, ampla, integral, abrangente, completa e plenamente brasileira.

Autoritária como toda figura erigida na mentira, manipuladora como todo populista e de dentro do seu raquitismo intelectual e moral, na confluência de suas 26 reencarnações simultâneas geridas pelo único neurônio, jamais renunciará à construção mistificadora para compreender o Brasil e tornar-se tudo o que não é: apenas uma brasileira decente e, então, uma presidente decente.

Sugiro ao leitor-linguista-de-uma-palavra-só levar o conhecimento dele para tomar sol, exercitá-lo ao ar livre das ilusões a que o saber induz quando sabemos sem aprender, que o areje com dúvidas e incertezas porque é para isso que o conhecimento serve, pois, como dizia Clarice Lispector, a nossa ignorância (o que não sabemos) é o nosso melhor lado; e pare de culpar os dicionários.

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