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Valentina de Botas: Entre a cilada e o fio

Um Procurador-Geral cujo escopo das atribuições não contempla “depurar o sistema político" deveria, máxima vênia, ir catar coquinho

Por Augusto Nunes Atualizado em 22 mar 2017, 13h48 - Publicado em 22 mar 2017, 10h42

A corrupção é cultural, uma apropriação cultural, na infeliz expressão famosinha? A expressão teve destaque na redessociolândia – o mundinho que pensa conter o mundo e não que está nele contido – e na imprensa pouco antes do Carnaval, quando uma jovem branca usando turbante foi assediada no metrô por uma militante negra que a acusava, “enquanto não negra”, de usurpar um símbolo da cultura negra. Os coletivos e o restante dos opressores porta-vozes dos oprimidos escreveram textões ampliando a denúncia em flagrante prática do que os intolerantes combatem: a não ser que sejam todos sumérios, povos ao quais se atribui a invenção da escrita e que habitavam a Mesopotâmia ou a Ásia atual, escrever aquela inutilidade é um ato de apropriação cultural.

No belo “História Ilustrada do Vestuário”, publicado pela Publifolha em 2009, as pesquisadoras americanas Melissa Leventon e Livia Almendary, com lindas ilustrações de Auguste Racinet e Fiedrick Hottenroth, informam que o turbante não tem data e local de nascimento definidos, mas tudo indica tempos pré-cristãos e uma origem asiática, e não africana. Os africanos fizeram uma versão linda e, ao contrário dos asiáticos, eram as mulheres que o usavam. Os gregos antigos tiveram o seu e idem a moça branca do metrô que o usava à espera do crescimento dos cabelos ceifados pela quimioterapia. Essa antítese da estupenda capacidade dos grupos humanos de produzir cultura esboroando o insustentável princípio da pureza – porque se interseccionam e se transformam no que reconhecem e estranham entre si e dentro de si fazendo disso o fio no labirinto imaginário da civilização – ameaça a nossa macarronada de domingo na tara patológica dos movimentos esquerdistas em patrulhar a vida privada e as escolhas individuais.

E daí? Nada, só a cultura da intolerância e do desconhecimento cuja semeadura encontrou chão e clima propícios na clivagem artificial do nós x eles inaugurada pelo lulopetismo, no ofício dos tiranos em fomentar a estupidez. O Brasil, como labirinto imaginário de cada brasileiro, nunca fora um só, mas a nação heterogênea só tivera o bem e o mal em lados estanques sob regimes autoritários em que os donos do poder declaram-se “nós”, o bem. Sob os governos do PT, o país se esgarçou a ponto de os brasileiros mal se reconhecerem como nação e às margens do abismo. Enquanto o PSDB, essa Geni da política que apanha da esquerda e da direita, uniu a população na formidável implantação do Plano Real, o PT dedicou 13 anos à estratégia obsessiva de dividir o país para tiranizá-lo. Todos iguais? A seita que apregoava ser diferente provou no poder que nenhum gangsterismo se iguala a ela e está conseguindo forjar a igualdade embusteira para fragmentar seu legado criminoso inigualável. Se essa canalhice subjacente à corrupção disseminada triunfar, a Lava Jato terá sido mais uma esperança ou fio perdido no labirinto.

A clivagem seminal alcança a reforma previdenciária cuja rejeição no Congresso invalidará a PEC do teto dos gastos, já que este desabará sob o déficit previdenciário: segundo o ótimo Mansueto de Almeida, sem a reforma da Previdência, em 2024 a arrecadação da União ou pagará pensionistas ou contemplará os outros itens do orçamento. A coisa é complexa, claro, mas não deveria se prestar à ideologização e a clichês vazios do bem contra o mal, e sim unir a nação e mereceria integrar a pauta-mosaico dos brasileiros de bem que irão às ruas no dia 26 dando a si mesmos a oportunidade de reconhecer que, no mínimo, temos governo desde a saída tardia daquela senhora infeliz que fala suíço e, ainda que se faça a ele a sempre necessária oposição a qualquer governo, este difere dos dois anteriores na própria disposição de fazer reformas.

Mas Temer e quem o apoia podem contar com a má vontade imparcial e a antipatia isenta de quase toda a imprensa para qualquer decisão e com os ataques das corporações do funcionalismo e dos políticos para garantir a sacrossanta aposentadoria integral arrancada da miséria dos aposentados da iniciativa privada, ignorando que tudo foi profanado e a única garantia é ninguém receber mais nada.

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Não sei se a corrupção é cultural, o que sei é que cultura também se transforma ou a escravidão ainda seria prática corrente até hoje. Ora, os sistemas culturais, para continuar a fazer sentido em dada sociedade, mudam no tempo porque ela também muda, ambos são históricos portanto. A cultura naturaliza práticas. Tão corriqueira no Brasil, a corrupção foi naturalizada e seus adeptos reagem não apenas ao combate a ela, mas também ao da percepção histórica, autossustentável e autorrealizável: o odioso, conveniente, simplista e falso todos-são-iguais.

Os brasileiros que desafiam essa percepção, buscando um mínimo de racionalidade, ordem e ética no cotidiano, celebramos a Lava Jato porque ela demonstraria que, ainda que fossem todos iguais, há coisas que só o PT, o imperador da propinocracia transnacional, pode fazer: destruir o país não só por roubalheira, incompetência e nefasta visão de mundo, mas também perpetuando aquela percepção que, senão cultural, se pretende imutável.

O diabo é que a lentidão da Justiça dá a sensação de haver menos punições do que prometem sucessivas delações-do-fim-do-mundo, depoimentos-bomba, coletivas de imprensa e vazamentos sem contexto e isso abandona o país numa neblina em que nuances se perdem, o pensamento fica abrutalhado pela sensação de exaustiva urgência diária e a preciosa visualização de uma custosa recuperação já palpável se esfumaça. Há quem pense que os eleitores, e não a Justiça, julgarão antes. Pode ser. Mas então Maluf, Renan e Collor, representantes daquela corrupção de raiz e ausentes da lista “nutella” de Janot, têm sido inocentados sucessivamente.

Quando Rodrigo Janot descarta a delação de Leozinho Pinheiro, alegando vazamento e, no entanto, mantém a dos executivos da Odebrecht que originou a sigilosa lista cujo solene vazamento nos devolve ao nebuloso são-todos-iguais, a opacidade dos critérios preocupa. Ademais, um Procurador-Geral, cujo escopo das atribuições não contempla “depurar o sistema político”, pois o faria necessariamente segundo uma orientação política e aí, Santo Deus!,  que comemora numa carta dispensável os três anos de uma investigação que identificou o comandante máximo da roubalheira, mas o deixa solto para fazer comício até num depoimento, deveria, máxima vênia, ir catar coquinho.

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Depois da adulteração de remédios, gasolina, leite, democracia e da história, as instituições deveriam clarear a neblina. Só que os brasileiros alarmados descobriam em dois dias o que a Polícia Federal não soube em dois anos de investigação: “carne podre” é jargão para carne sem inspeção, e não estragada; o papelão é o da embalagem da carne, e não uma mistura ao produto; os tais ácidos ascórbico (tipo um redoxon) e sórbico não causam câncer; dos vinte e um frigoríficos suspeitos de irregularidades, três foram interditados num mundão de quase 5 mil estabelecimentos; cabeça de porco, a fraudadora de salsichas, é uma iguaria. A imprecisão e o alarmismo da PF parecem mais graves do que os crimes que ela denunciou. Contudo, ela não ficaria melhor no retrato se a coisa toda for como apresentou, pois então os investigadores terão permitido que a população consumisse produtos perigosos por dois anos.

A cultura rala do são-todos-iguais é uma cilada que nos impede de nos apropriarmos de coisa muito mais substanciosa: nosso belo dever de imaginar que há um labirinto e um fio (Jorge Luis Borges).

 

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