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Valentina de Botas: Desmorrer e uma cantiga de ninar

Não foi para isso que marchei pelo impeachment, mas para interromper um projeto de poder vermelho-autoritário

Por Augusto Nunes Atualizado em 30 jul 2020, 20h43 - Publicado em 19 out 2017, 10h51

Num país em que se ainda é necessário explicar por que uma criança não deve ir a uma exposição ver e tocar num homem nu, conclui-se que é inútil explicar; e a presença da mãe chancelando tudo é um agravante, não um atenuante.

Num país em que artistas, que censuravam a seu modo o colega dissidente do credo lulopetista e que dormiram um sono tão profundo em 13 anos de petismo que não viram a máquina do partido difamar opositores e críticos, lançam uma campanha contra “a censura e a difamação” difamando o justo repúdio de grande parte da sociedade (e não só do MBL, que apanha por ter apoiado o impeachment de Dilma) à imposição de um pensamento hegemônico, de um esquerdismo descolado da realidade (há outro?) e preocupado apenas com a liberdade para as respectivas guildas ideológicas monopolizarem a cultura (no sentido amplo) porque ao credo esquerdista, que só deu errado onde foi tentado, restou a preciosa trincheira dos valores.

Num país em que ditos liberais e grande parte da imprensa e de formadores de opinião comemoram a desfiguração da Constituição pelo STF, em particular os votos escandalosamente autoritários dos ministros Luiz Fux e Roberto Barroso que ignoraram picuinhas burguesas como a vigência do estado de direito e a separação dos poderes, para afastar um parlamentar (tanto faz quem seja), e, tendo o Senado consertado a decisão aberrante, vemos muitos, que mesmo sabendo que medida cautelar contra parlamentar é incabível, cederem ao apelo da doutrina da alfafa+pelotão de fuzilamento para não perder os cliques e likes da manada.

Num país que, havendo desencravado do poder a súcia que atrasou nossa vida 30 anos, cede ao voluntariado para o caos se expondo ao risco de restaurá-la por via jurídica na politização da Justiça consequente à judicialização da política, alguns operadores da agenda policial querem impor a própria agenda política. Assim, o procurador do MPF Carlos Fernando dos Santos Lima retoma a ladainha exaustiva de querem-acabar-com-a-Lava-Jato, denunciando que o presidente Temer “está destruindo a operação”. Tenho três perguntas ao blogueiro do povo brasileiro: 1) onde você estava, filhão, quando o ministro da justiça petista Eugênio Aragão disse que afastaria procuradores se sentisse “cheiro de vazamento”?; 2) o que a LJ deixou de fazer por “estar sendo destruída” e não por opção?; 3) onde anda Marcelo Miller? E faço uma sugestão: que Carlos Fernando corra enquanto é tempo; deixe pra lá a paixão, a militância, o medinho e o teclado, e vá prender aquele que o próprio MPF anunciou como chefe da coisa toda. Coragem: combata a impunidade de que você abusa para a retórica oca, e vá prender Lula, depois de tê-lo lavado na sujeira alheia e dado-lhe um discurso de perseguido para voar nas asas seguras de “medidas menos gravosas”.

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Num país em que, depois de Lula e discípulos chamarem de golpe o processo livre de irregularidades para depor Dilma, foi interditado o termo “golpe” para dar nome ao golpe arquitetado nas janoelyces para derrubar Temer. Parece que foi outorgada ao lulopetismo a prerrogativa de inutilizar certo léxico da nossa língua. Lamento, chamo as coisas pelo nome que têm: Janot poderia reunir elementos para processar Temer depois que este cumprisse o mandato, mas o PGR tinha a própria agenda política que pretendia alcançar através da policial e forçou a mão. Não foi para isso que marchei pelo impeachment, mas para interromper um projeto de poder vermelho-autoritário que quer se impor mediante outros meios: as larvas que incubou nas instituições.

Num país assim, quero falar de outra coisa; da história de uma menininha, uma cantiga de ninar e de desmorrer.

Minha filha tinha uns quatro anos quando o achamos se debatendo debaixo da árvore na rua de casa. É um filhote, deve ter caído do ninho, expliquei a ela. Andamos o bairro inteiro atrás de veterinário de passarinho. Achamos; também compramos comidinha para ele e minha filha o acomodou num bercinho de boneca na área de serviço. Na manhã seguinte, deparei com a pequena morte ao lado da máquina de lavar. Esperei minha filha acordar. Antes de tomar o próprio café, ela quis alimentar o bicho. 
– Querida, ele morreu. 
– Tá bom, mamãe.

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Fizemos um funeralzinho com bolo e frutas, ao som de “se esta rua, se esta rua fosse minha, eu mandava, eu mandava ladrilhar, com pedrinhas, com pedrinhas de brilhantes, para o meu passarinho descansar”. 

Então tá, fui jogar o cadaverzinho no lixo, ela se revoltou.
– Por que você vai fazer isso com o meu único passarinho na vida, mamãe? 
– Ele morreu, meu bem, está morto! 
– E daí, mamãe? Deixa ele quieto no bercinho, por favor, morto não incomoda ninguém, espera um pouquinho ele desmorrer.

Aquela foi a primeira noite em que ela dormiu na cama dos pais, fez o mesmo nas duas ou três noites seguintes. Onze anos depois, nos primeiros dias de agosto, dormi na cama da minha filha para niná-la com a mesma cantiga, trocando “passarinho” pelo nome do melhor amigo dela que se suicidara no fim de julho. Estudavam juntos há oito anos; ele vinha aqui em casa com alegria, à vontade no ambiente simples tão diferente daquele onde vivia com família de posses; trazia o violão quase sempre e compunha músicas que minha filha, tão afinada, cantava. Ainda não conseguimos entender o inexplicável, a incognoscível, a polpa bruta; então entoamos aquela cantiga de infância com um silêncio dentro da gente, procurando em alguma colina ensolarada da alma a esperança de um dia, ao nos fundirmos todos no mesmo azul, desmorram todos que amamos e não precisemos entender nada, o nada.

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