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José Mário Pereira revive a parceria com Roberto Campos

O comandante da Topbooks conta como foi a gestação do livro Lanterna na Popa e recorda a convivência com um dos maiores pensadores brasileiros

Por Augusto Nunes Atualizado em 30 jul 2020, 20h58 - Publicado em 3 abr 2017, 07h04

POR SERGIO LAMUCCI, Valor

“A Lanterna na Popa” chegou às livrarias em setembro de 1994. O catatau de mais de 1,4 mil páginas, com as memórias de Roberto Campos, tornou-se um sucesso editorial improvável, vendendo mais de 100 mil exemplares. A edição coube a José Mario Pereira, jornalista e editor da Topbooks, que já havia publicado dois livros de Campos — “O Século Esquisito”, em 1990, e “Reflexões do Crepúsculo”, em 1991.

Pereira conta que, em 11 de abril de 1993, leu na “Folha de S. Paulo” uma entrevista em que Campos afirmava que “A Lanterna na Popa” sairia em julho daquele mesmo ano. “Percebi ali que haveria muita disputa pelo livro, mas, por insistência de minha mulher, liguei no fim da tarde para o dr. Roberto, comentei a matéria, e ele disse: ‘Agora vou terminar o livro’. Indaguei: ‘Mas não está pronto?’, e ele: ‘Já escrevi muita coisa, mas ainda há muito trabalho a ser feito’.” Marcaram um encontro para o dia seguinte.

“Tivemos uma longa conversa, na qual ele me mostrou cartas de algumas editoras interessadas no livro, e perguntou o que eu propunha. Basicamente, ofereci a ele os meus préstimos como pesquisador, revisor, divulgador, e meio a meio no lucro.” No dia seguinte, a secretária de Campos telefonou a Pereira, dizendo que o economista pedira que lhe fossem entregues os disquetes com o material escrito até aquele momento. “Ele queria uma avaliação minha. A partir daí, me dediquei inteiramente à finalização do livro. Trabalhei com dr. Roberto intensamente em ‘A Lanterna na Popa’ de 13 de abril de 1993 até o seu lançamento, em 12 de setembro de 1994.”

No fim de semana, os dois ficavam no escritório do apartamento de Campos conferindo citações, checando repetições. “Ele fazia inserções e criava novos capítulos, sempre a lápis, que durante a semana eu conferia, sugerindo uma mudança ou outra, além de acréscimos”, diz. “Para atiçar a memória do dr. Roberto, organizei num canto de sua biblioteca um conjunto de memórias, depoimentos e biografias de contemporâneos dele, e fichei todas as referências ao seu nome que considerei relevantes. Eu comentava tudo isso com ele, e muitas vezes daí surgiam novas lembranças, que ele imediatamente anotava para uma passagem ou outra do ‘Lanterna’. Um dos livros que anotei bem foram as memórias de Afonso Arinos; outro, a biografia de Castello Branco por Luiz Viana Filho.”

A primeira edição teve 6 mil exemplares. “A seguir foram impressas pelo menos cinco edições de 20 mil unidades. A partir daí fui reimprimindo tiragens, em geral de 2 mil exemplares. O livro nunca deixou de ser reimpresso.” Pelas contas de Pereira, até hoje foram vendidas entre 110 mil e 115 mil unidades.

A reação da crítica foi excelente, segundo ele. “Wilson Martins escreveu, no ‘Jornal do Brasil’: ‘Podem-se ler nas memórias de Roberto Campos a história política, a história diplomática, a história econômica, a história ideológica e a história intelectual do Brasil nos últimos 50 anos — assim como, bem entendido, a autobiografia de um estadista que nelas desempenhou funções de destaque e prestígio.”

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O editor conta que alguns leitores reclamaram do peso do livro, que saiu primeiro num volume só – depois, foi dividido em dois tomos. “Paulo Francis foi um que lamentou não poder lê-lo na cama. Rachel de Queiroz me pediu para conseguir um exemplar cortado ao meio. Eu fiz melhor: mandei pra ela um exemplar com os cadernos soltos. Assim ela o leu, inteiro, na rede”, conta Pereira. “A socialite Carmen Mayrink Veiga disse que cortou o exemplar com a tesoura e o levava aos pedaços para ler na praia. Caetano Veloso, que lera o livro de ponta a ponta, brincou ao me conhecer: ‘Então você é o culpado pela minha bursite?’.”

Pereira se tornou um amigo próximo de Campos, sem nunca deixar de tratá-lo por “dr. Roberto”. Os dois foram apresentados pelo ensaísta e diplomata José Guilherme Merquior (1941-1991). “Isso se deu no dia 18 de novembro de 1981, numa quarta-feira em que Henry Kissinger [ex-secretário de Estado dos EUA] deveria fazer uma conferência, que afinal não aconteceu devido ao tumulto criado pelos estudantes”, recorda Pereira. “O que de imediato me chamou a atenção foi a fleuma, a tranquilidade com a qual presenciava o desenrolar da confusão. O que ele fazia? Contava uma piada atrás da outra, e, como fazia isso bem, provocava risos do grupo que se formou em torno dele. Ele possuía um estoque infindável de frases jocosas, piadas envolvendo figuras históricas e também muitas de teor fescenino e erótico.”

Pereira diz que Campos “tinha amizade e admiração intelectual” por Merquior. “Os dois comungavam o entusiasmo pela obra do francês Raymond Aron, de quem foram amigos, e sobre o qual escreveram.” Segundo o editor, Campos tinha imenso respeito intelectual por Eugênio Gudin, ministro da Fazenda entre 1954 e 1955, “a quem considerava um intelectual lúcido e cosmopolita”. Também admirava Mario Henrique Simonsen “por sua afinidade com a matemática, e também pela quase obsessão do amigo por ópera, especialmente as de Wagner, que ele, dr. Roberto, dizia considerar uma das supremas formas do tédio”. O editor diz também que em várias ocasiões viu Campos referir-se elogiosamente a Celso Furtado, principal nome do desenvolvimentismo no país. “Campos tinha a capacidade de admirar, mesmo quando não concordava com a totalidade das ideias expressas por seus adversários ideológicos.”

A seguir, os principais trechos da entrevista:

Valor: Como o sr. conheceu Roberto Campos?

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José Mario Pereira: Quem me apresentou ao dr. Roberto, em Brasília, foi meu amigo José Guilherme Merquior. Isso se deu no dia 18 de novembro de 1981, numa quarta-feira em que Henry Kissinger [ex-secretário de Estado dos EUA] deveria fazer uma conferência, que afinal não aconteceu devido ao tumulto criado pelos estudantes. Eu estava lá enviado pelo jornal “Última Hora”, onde escrevia sobre livros. Merquior, na época, assim como Francisco Rezek, se encontrava na assessoria de Leitão de Abreu, então o chefe da Casa Civil. Ali, enquanto Kissinger era retirado da sala por questões de segurança, e a polícia tentava conter a confusão, Merquior me apresentou ao dr. Roberto. O que de imediato me chamou a atenção foi a fleuma dele, a tranquilidade com a qual presenciava o desenrolar da confusão. O que ele fazia? Contava uma piada atrás da outra, e, como fazia isso bem, provocava risos do grupo que se formou em torno dele. Ele possuía um estoque infindável de frases jocosas, piadas envolvendo figuras históricas, e também muitas de teor fescenino e erótico.

Valor: Como foi editar e publicar “A Lanterna na Popa?”

Pereira: Eu já tinha publicado dois livros do dr. Roberto, “O Século Esquisito”, em 1990, e “Reflexões do Crepúsculo”,  no ano seguinte, quando, a caminho da Churrascaria Majórica, em Petrópolis, parei numa banca para comprar a “Folha de S. Paulo”. O caderno “Mais!” daquele domingo, 11 de abril de 1993, trazia na capa o título “Ok, Bob: Você venceu”, e na parte interna uma entrevista conduzida pelo jornalista Fernando Rodrigues, em que se lia, logo na abertura, que “A Lanterna na Popa”, sairia em julho do mesmo ano. Percebi ali que haveria muita disputa pelo livro mas, por insistência de minha mulher, liguei no fim da tarde para o dr. Roberto, comentei a matéria, e ele disse: “Agora vou terminar o livro”. Indaguei: “Mas não está pronto?”, e ele: “Já escrevi muita coisa, mas ainda há muito trabalho a ser feito”. Insisti: “O sr. estará amanhã no escritório?”. Ele disse que sim, e perguntou se eu gostaria de passar lá. Tivemos uma longa conversa, na qual ele me mostrou cartas de algumas editoras interessadas no livro, e perguntou o que eu propunha. Basicamente, ofereci a ele os meus préstimos como pesquisador, revisor, divulgador, e meio a meio no lucro. No dia seguinte, d. Nayde, a secretária dele, me telefonou dizendo que o dr. Roberto tinha ido para Brasília, mas pedira a ele para me entregar os disquetes com o material do livro no ponto em que estava. Ele queria uma avaliação minha, e a partir daí me dediquei inteiramente à finalização do livro. Portanto, trabalhei com dr. Roberto intensamente em “A Lanterna na Popa”, de 13 de abril de 1993 até o seu lançamento, em 12 de setembro de 1994. Foi uma experiência profissional e humana muito enriquecedora para mim. Nos fins de semana ficávamos no escritório do apartamento dele, conferindo citações, checando repetições; ele fazia inserções e criava novos capítulos, sempre a lápis, que durante a semana eu conferia, sugerindo uma mudança ou outra, além de acréscimos. Para atiçar a memória do dr. Roberto, organizei num canto de sua biblioteca um conjunto de memórias, depoimentos e biografias de contemporâneos dele, e fichei todas as referências ao seu nome que considerei relevantes. Eu comentava tudo isso com ele, e muitas vezes daí surgiam novas lembranças, que ele imediatamente anotava para uma passagem ou outra do “Lanterna”. Um dos livros que anotei bem foram as memórias de Afonso Arinos; outro, a biografia de Castello Branco por Luiz Viana Filho.

Valor: Quantos exemplares foram vendidos até hoje?

Pereira: A primeira edição de “A Lanterna na Popa” foi de 6 mil exemplares. A seguir foram impressas pelo menos cinco edições de 20 mil unidades. A partir daí fui reimprimindo tiragens, em geral de 2 mil exemplares. Acredito que tenhamos vendido entre 110 mil e 115 mil. Desde então esse livro nunca deixou de ser reimpresso, e há muito alcançou a categoria de obra de referência incontornável sobre o Brasil em que o autor viveu e atuou. No dia 10 de setembro de 1994, um sábado, entreguei a Roberto Campos, no Aeroporto Santos Dumont, os primeiros 46 exemplares. Ele os levou para São Paulo, porque tinha um café da manhã agendado com jornalistas na manhã do dia 12, uma segunda-feira. À noite se deu o primeiro lançamento, com patrocínio da Bolsa de Mercadorias e Futuros. No Rio, a noite de autógrafos ocorreu dois dias depois, na sede do Jóquei Clube, no centro da cidade. Em São Paulo o dr. Roberto autografou 522 dos 550 livros que mandamos para lá, e que chegaram ao seu destino em cima da hora, porque a gráfica atrasou a entrega, o que causou muito estresse. Algumas livrarias que se recusavam a ter os livros do dr. Roberto, mesmo em consignação, passaram a vendê-lo com entusiasmo. A reação da crítica também foi excelente. Wilson Martins escreveu no JB de 4 de março de 1995: “Podem-se ler nas memórias de Roberto Campos a história política, a história diplomática, a história econômica, a história ideológica e a história intelectual do Brasil nos últimos 50 anos – assim como, bem entendido, a autobiografia de um estadista que nelas desempenhou funções de destaque e prestígio. São níveis de leitura que se completam e complementam entre si, para nada dizer do seu extraordinário valor documental”. Houve também quem reclamasse do peso do livro. Paulo Francis foi um que lamentou não poder lê-lo na cama. Rachel de Queiroz me pediu para conseguir um exemplar cortado ao meio. Eu fiz melhor: mandei pra ela um exemplar com os cadernos soltos. Assim ela o leu, inteiro, na rede. A socialite Carmen Mayrink Veiga disse que cortou o exemplar com a tesoura e o levava aos pedaços para ler na praia. Tempos depois, Caetano Veloso, que lera o livro de ponta a ponta, brincou ao me conhecer: “Então você é o culpado pela minha bursite?”

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Valor: Como era Roberto Campos no convívio com os amigos?

Pereira: Embora fosse um tímido, o que muitos desavisados tendiam a confundir com arrogância, ele era muito educado, atencioso, e cordial no trato com amigos e conhecidos. Gostava da convivência com a sua turma de confiança. Apreciava compartilhar o seu whisky com amigos, sabia ouvir e estimular a conversação. Mas quando estava em meio ao trabalho, era às vezes telegráfico, especialmente ao telefone. Eu logo percebi que quando ele falava “OK” era o sinal para encerrar a ligação. Ele dizia “OK”, e eu me apressava em concluir: “Até logo. Qualquer novidade ligo para o senhor”. Então nunca tivemos nenhum desentendimento. Nossas conversas pessoais giravam muito em torno de literatura e filosofia. Ele contava boas histórias de Guimarães Rosa e Nelson Rodrigues, falava de suas leituras de Aristóteles e Santo Agostinho no seminário, da forte impressão que lhe deixaram certos intelectuais que conheceu na Inglaterra, alguns por intermédio de José Guilherme Merquior. Aprendi muito no convívio com ele, e por isso lhe sou grato. No íntimo era um homem afetuoso. Quem ler a seção “Elegias” em “Reflexões do Crepúsculo” e “Na Virada do Milênio” vai comprovar isto

Valor: Como os seus amigos de esquerda, como Darcy Ribeiro, viam a sua amizade com Roberto Campos?

Pereira: Eu tendo a crer que Darcy comungava com a opinião de Brizola, que afirmou: “Roberto Campos é o mais autêntico e competente dos tecnocratas entreguistas”. Quando finalizava as suas memórias, já doente, Darcy me chamou várias vezes ao seu apartamento para conversar, e ajudá-lo a rever “Confissões”, que afinal teve edição póstuma. Uma vez, assim que entrei na sala, ele me olhou e disse: “Você está com uma cara boa. Soube também que ficou rico!” Eu ri, e perguntei que história era aquela. Ele então disparou: “Ora, você deve ter recebido muito dinheiro do Departamento de Estado americano, ou de algum outro órgão pretensamente cultural deles, para editar o enorme volume de memórias do Roberto Campos! Eles também devem ter ajudado na pesquisa, não?” Eu caí na gargalhada, e passei a contar as dificuldades que tive para levantar o dinheiro necessário para editar “A lanterna na popa”. “Mas o Roberto Campos é muito rico, Zé Mario! Ganhou muita comissão servindo aos interesses americanos no Brasil! Ele então pagou a edição?” Eu tornei a dizer que não, que até pegara dinheiro emprestado para editar o “Lanterna”, e que Roberto Campos não me parecia tão rico assim, pois testemunhara as dificuldades dele para quitar dívidas de campanhas eleitorais, chegando até a vender quadros que tinha ganho de amigos, como Di Cavalcanti. Mas Darcy continuou incrédulo, sugerindo que isso era teatro, e mudei de assunto.

Valor: Friedrich Hayek foi de fato a maior influência intelectual de Campos? 

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Pereira: Antes de Hayek, nos seus anos de formação, ele foi influenciado por [John Maynard] Keynes, principalmente pelo seu “Tratado sobre a Moeda”; por Gottfried Haberler – de quem foi aluno; pelo Schumpeter de “Business Cycle”s, de 1939, e por Ragnar Nurkse.  O Hayek de quem se aproximou na maturidade, muito mais que o economista, foi o filósofo liberal que escreveu obras seminais como “A Constituição da Liberdade. Ele também demonstrava um verdadeiro entusiasmo pelas ideias de Margaret Thatcher, com quem esteve várias vezes. No Brasil, a grande influência em sua formação profissional ele a recebeu de Eugênio Gudin e Otávio Gouveia de Bulhões.

Valor: A fase mais liberal de Campos se deu depois de seu período como embaixador na Inglaterra? Em alguma medida lamentava a visão anterior sobre economia e o mundo? Ricardo Bielchowsky [professor da UFRJ], ao tratar do pensamento econômico brasileiro entre 1930 e 1964, classifica Campos como um desenvolvimentista não nacionalista, por exemplo.

Pereira: No começo da carreira, ele chegou a ser tachado de esquerdista! O dr. Roberto exercitava a autocrítica o tempo todo. Ele admitia os seus erros, comentava as ilusões que teve ao longo da vida, os fracassos. Era por demais autocrítico. Às vezes estávamos vendo com ele uma fala sua na televisão, e o elogiávamos. Ele agradecia com um rápido “obrigado”, e acrescentava: “Mas como estou feio! Meu Deus!” Leu com enorme interesse o livro do Ricardo Bielschowsky, “Pensamentoeconômico brasileiro”, onde se encontram excelentes páginas de análise à sua obra. Na classificação do autor, Gudin e Bulhões seriam “neoliberais” porque, ao contrário dos liberais até a Revolução de 30, admitiam uma moderada intervenção estatal para regular as imperfeições do mercado, enquanto Roberto Campos, em parte por ter concebido o Plano de Metas, seria um “desenvolvimentista”. Celso Furtado, num de seus livros, chama atenção para o ceticismo de Roberto Campos em relação ao Estado. Chega mesmo a supor que essa posição tomou forma quando idealizou o BNDE, e Getúlio Vargas, para seu espanto, entregou a superintendência-geral do órgão, o cargo mais importante na sua estrutura de comando, a Maciel Monteiro, que era jejuno em economia.

Valor: Que economistas e intelectuais brasileiros Campos mais admirava?

Pereira: Ele tinha imenso respeito intelectual por Eugênio Gudin, a quem considerava um intelectual lúcido e cosmopolita, e admirava Mario Henrique Simonsen por sua afinidade com a matemática, e também pela quase obsessão do amigo por ópera, especialmente as de Wagner, que ele, dr. Roberto, dizia considerar uma das supremas formas do tédio! Ele apreciava canto gregoriano, certamente eco de sua passagem pelo seminário, e algumas peças de Bach. Quando caminhava sozinho, sempre de moleton, pelo calçadão de Ipanema, em geral o fazia portando um walkman, mas o que ouvia era Shakespeare e Eliot. Em relação a Merquior, ele tinha amizade e admiração intelectual. O diálogo deles se estreitou no período em que coincidiram em Londres, ele embaixador. Nessa época, discutiram muito sobre as mudanças que ocorriam no mundo, e que levaram à Queda do Muro de Berlim, a perestroika, por exemplo, e as últimas novidades em termos de pensamento liberal. Dr. Roberto era um entusiasta da obra madura de Hayek, especialmente de “A constituição da liberdade”. Ele também comungava com Merquior no entusiasmo pela obra do politólogo francês Raymond Aron, de quem foram amigos, e sobre o qual escreveram. É de primeira ordem a introdução que dr. Roberto fez para a edição que a UNB lançou nos anos 80 de “O ópio dos intelectuais”. Em várias ocasiões o vi referir-se elogiosamente a Celso Furtado; embora discordassem em algumas questões, ele o respeitava muito. Uma vez, saindo com Celso Furtado da ABL, este me confessou ter ficado surpreso com o espaço que o dr. Roberto Campos havia dado a ele em suas memórias, e considerou que o autor fora muito generoso com ele. Roberto Campos tinha a capacidade de admirar, mesmo quando não concordava com a totalidade das ideias expressas por seus adversários ideológicos. Não se encontra rancor ou mesquinharia intelectual em nenhum dos perfis de personalidades sobre as quais ele fala em “A lanterna na popa”.

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Valor: Qual a importância de Campos para a difusão das ideias liberais no Brasil?      

Pereira: O liberalismo no Brasil tem uma história longa, já esmiuçada por estudiosos como Luiz Camilo de Oliveira Torres, Celso Lafer, Wanderley Guilherme dos Santos, José Murilo de Carvalho, entre  outros. Pela sua capacidade de exposição, vigor analítico e destemor na defesa de seus pontos de vista, Roberto Campos teve uma enorme importância na história do nosso liberalismo econômico. Ele herdou e ampliou o debate sobre as ideias liberais de Eugênio Gudin.

Valor: Campos foi ferozmente criticado pela esquerda. Mostrava ressentimento quanto a isso?

Pereira: Eu tenho a impressão de que ele não cultivava ressentimento de nenhuma ordem. Às vezes comentava que fora alvo de muitas campanhas injustas, que os estudantes promoveram o seu enterro, mas logo depois dava um riso. Havia um componente estoico na personalidade dele, que o predispunha a aceitar com tranquilidade as reações que suas ideias provocavam, mesmo que tais reações fossem desmedidas, tolas ou arbitrárias. Nisso eu o achava parecido com Raymond Aron, e assinalei essa semelhança de postura intelectual no texto que escrevi para as “orelhas” de “A Lanterna na Popa”.

Valor: As reformas do PAEG são vistas em geral como o grande legado de Campos como homem público. O que ele dizia sobre o período no governo Castello Branco, ao lado de Bulhões? Lamentava algo, como a criação da correção monetária?

Pereira: Ele tinha Castello Branco em alta conta. Admirava o seu espírito cívico, a disposição para ouvir, e seu espírito liberal. É bom lembrar que o então presidente queria ser sucedido por um civil. Segundo o depoimento de Cordeiro de Farias, o candidato de Castello era Bilac Pinto, um dos próceres da UDN. Num artigo que publicou em “O Globo” a 27 de março de 1994, dr. Roberto  afirmou: “Com a correção monetária, criei um carneiro que virou um bode”. Numa entrevista à IstoÉ de abril de 1983, declarou: “‘Arrocho salarial’ é expressão pejorativa. O que houve ao tempo de Castello Branco foi ‘realismo salarial’. Era necessário evitar que os salários reais crescessem mais que a produtividade. E era necessário restaurar a exangue capacidade de investimentos, quer do Governo, quer das empresas”. Dr. Roberto era muito autocrítico. Admitia erros de percurso, evidentemente. É de sua lavra esta reflexão: “Quem chega ao crepúsculo de uma longa experiência na vida pública pode sempre detectar, com realismo, a brecha entre o desejável e o realizável, entre a promessa e o desempenho”.

Valor: Em “A Lanterna na Popa”, Campos mostra uma visão bastante positiva de Castelo Branco. Ele manifestou alguma vez arrependimento ou reserva por ter sido ministro da primeira fase do governo militar?  

Pereira: Não só em “A lanterna na popa” ele expressa admiração e respeito pessoal por Castello Branco. Em artigos de jornal e em entrevistas anteriores ele reconhece as qualidades de estadista do marechal-presidente. Ele considerava que um de seus êxitos junto a Castello foi fazê-lo compreender a necessidade de se alcançar a estabilidade de preços. A mim ele nunca expressou reserva de qualquer ordem, ou mesmo arrependimento, por ter colaborado com governos militares. Considerava-se um funcionário público, apto a desempenhar funções administrativas e de planejamento econômico. Eu penso que o dr. Roberto, por temperamento, não era de arrependimentos dessa natureza. Ele não era um carreirista, desses que fazem qualquer coisa pelo poder. Havia nele uma autonomia intelectual genuína, e ele não evitava conflito ou polêmica quando elas se faziam necessárias.

Valor: Roberto Campos defendeu com insistência a privatização de empresas estatais, combatendo a Petrobras, que chamava de Petrossauro. Como ele veria o que ocorreu com a empresa nos últimos anos, envolvida num grande escândalo de corrupção?

Pereira: Ele foi um corajoso defensor das privatizações, alertando, porém, para a necessidade de que fossem realizadas com base em minuciosos estudos preliminares, para evitar pressões políticas, lobismo irresponsável, e roubalheira. Em relação à Petrobras, tinha uma visão crítica, amparada no exame detalhado que fazia de relatórios, balanços e informações que recebia, na Câmara e no Senado, de gente ligada à empresa. Mesmo assim, penso que ele se espantaria com o nível de bandalheira praticada nos últimos anos na Petrobras, e que a Lava-Jato ajudou a trazer a público. Quem consultava muito o dr. Roberto sobre a situação econômica brasileira, com ênfase no desempenho das estatais, entre elas a Petrobras, era o Paulo Francis. Na última passagem do Francis pelo Rio, almocei com ele na casa de um amigo nosso. Ao final fui ao telefone, liguei para o dr. Roberto e passei o telefone para o Francis. Eles conversaram por um bom tempo, o Francis dando gargalhadas, e pelo menos uma vez eu o ouvi dizer: “É um espanto. A Petrobras é um espanto!”

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