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J. R. Guzzo: O delito de ser livre

Na ofensiva contra a liberdade, fica cada vez mais difícil viver nos termos da Constituição, segundo a qual todo brasileiro, respeitada a lei, tem o direito de se conduzir como prefere

Por Augusto Nunes Atualizado em 30 jul 2020, 22h18 - Publicado em 12 jul 2016, 19h06

PUBLICADO NA EDIÇÃO IMPRESSA DE VEJA

Não está fácil para ninguém, hoje em dia, cuidar da própria vida com um pouco de paz. É uma expectativa modesta, no fundo, quando se entende que esse sossego significa apenas poder contar com uma ou outra garantia básica. Trata-se de não ter em volta de si, cada vez mais, todo um sistema decidindo o que é melhor para você, e isso para “o seu próprio bem” — e que determina, também, o que é preciso pensar, dizer ou fazer diante de praticamente tudo. Seria um alívio, igualmente, viver em um mundo onde as coisas não estivessem divididas, como vai se tornando regra, apenas entre as obrigatórias e as proibidas. Ou, enfim, onde fosse possível a cada um simplesmente pensar e agir segundo a própria cabeça. Deveria valer, em todos esses casos, a Constituição em vigor, que dá a qualquer brasileiro o direito de se conduzir como prefere, bastando para tal respeitar o que diz a lei. Mas o fato é que o dia a dia do cidadão não está sendo assim. Existe hoje uma guerra não declarada, presente no debate político, nos meios de comunicação e até nos currículos escolares, contra quem quer se comportar de maneira independente — e o que está em jogo, aí, é a liberdade.

“Parece que odiamos viver em liberdade”, escreveu tempos atrás o sociólogo Bolívar Lamounier. Parece mesmo. A história começa com a pressão, cada dia maior, em favor da “intermediação do Estado” no máximo possível de aspectos da existência humana. De acordo com essa visão do universo, qualquer coisa, para ser lícita, tem de ter a permissão, a gerência ou o reconhecimento de algum tipo de autoridade pública, ou mesmo privada. É como se a sociedade tivesse a obrigação de aceitar que o governo tome a maioria das decisões para cada um de nós, da tomada elétrica de três pinos ao que os alunos devem aprender nas aulas de geografia. Funciona como uma espécie de mandamento religioso, sem a aplicação do qual nada pode ser bom, legítimo ou permitido por lei. Na verdade, quando se ouvem as pregações mais rigorosas sobre o assunto, certas coisas nem deveriam existir, já que não são oficialmente “reconhecidas” pelo poder público. O ângulo reto, por exemplo, não tem existência legal no Brasil; não está regulamentado por lei e, portanto, não existe. Para muita gente boa, é mais ou menos por aí o caminho certo.

Vivemos um tempo no qual se pretende negar ao cidadão que não utiliza o transporte público o direito de escolher o tipo de carro que quer pagar, com o próprio dinheiro, para ir de um lugar a outro; tem de ser táxi, que é supervisionado pela prefeitura, e, portanto, é o único meio legal. É tido como grave delito social defender o livre acordo entre patrões e empregados a respeito de salários e outras questões; as partes, até quando querem exatamente a mesma coisa, não podem se entender “à margem da lei”. Um jornalista só poderá ser um jornalista se o Estado disser que ele é jornalista; sem isso, estará exercendo ilegalmente a profissão. É proibido vender um quilo de linguiça caseira sem licença do SIF. A liberdade de empreender, que se imaginava algo positivo, é vista como uma “teologia” que conduz ao “fascismo”.

A liberdade de prosperar, nessa mesma toada, recebe frequentes sentenças de condenação — ela levaria o indivíduo a trabalhar para ganhar mais dinheiro que os outros, e isso vai contra suas obrigações de colaborar para a construção de uma sociedade igualitária. As classes intelectuais em geral e as organizações sindicais em particular combatem abertamente a remuneração pelo talento, pelo mérito e pelo esforço individual, por acharem que essa modalidade de incentivo produz concentração de renda e desigualdade.

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Este é um clima em que não é bom identificar-se como indivíduo. Nos tempos atuais, segundo o evangelho pregado mundo afora, é preciso ser “representativo” de alguma coisa: um grupo, uma classe social, um conjunto de posturas, um sistema de pontos de vista, de crenças ou de costumes, e por aí vai. Você não é você — é representante de algum tipo de “coletivo”. Também se trata de uma atmosfera em que é péssimo discordar. Considere-se a palavra “fascista”, por exemplo, usada a cada cinco minutos nos debates de hoje no Brasil: para se adequar à sua utilização corrente, deveria mudar de significado nos dicionários oficialmente aceitos. Atualmente quer dizer: “alguém que não concorda com você”, ou “algo de que você não gosta” — caso, naturalmente, você faça parte dessa nebulosa chamada “esquerda”, ou se considere alguém “moderno”. O mesmo acontece com “preconceito” — passou a ser qualquer posição diferente da sua. Em suma: é proibido acreditar naquilo que a pessoa acredita. É como se a humanidade estivesse de volta ao tempo da encíclica Mirari Vos, menos de 200 anos atrás, na qual se dizia que a liberdade de consciência era um “erro corrupto”, além da “maior e mais poderosa peste do mundo moderno”.

A origem mais aproximada disso tudo, para quem não é atraído por complicações, talvez seja simplesmente o seguinte: falta do que fazer. Num mundo cada vez mais carente de causas que valham realmente esse nome, passam a ser causas a criação de porcos orgânicos, a ampliação das terras indígenas ou a “identidade de gêneros”. (Ao que parece, é “fascista” alguém achar que tem direito a se identificar apenas como homem ou mulher.) Há, por cima de tudo, um vago incômodo contra a “injustiça social”, e desejos moles de acabar com o capitalismo — que, na falta de outra coisa, é identificado como a causa das injustiças e da desigualdade. Em vez dele, propõe-se a “intermediação do Estado” para resolver tudo o que está errado.

O problema é que os promotores dessas sensações (não chegam a ser crenças, nem mesmo opiniões) vivem invariavelmente no ambiente de abundância que o capitalismo criou pelo mundo afora — e só existem por causa dela. Tudo o que o homem produz vai ficando mais barato; cada vez mais gente tem acesso a mais coisas. Cinquenta anos atrás era preciso ser rico para ter um carro, ou entrar num restaurante. Hoje essas coisas estão disponíveis para milhões. Vive-se, em suma, em um mundo de sobras — um facilitador decisivo para quem quer se lamentar. A escassez leva ao trabalho. A sobra leva ao ócio — e uma das consequências diretas do ócio é a soma de despeito e inconformismo contra o sistema de liberdade econômica, que ganhou e ganha cada vez mais. É um contrassenso: na vida real o capitalismo é a única forma de organização social que dá chances aos pobres e cria a maior igualdade que dizem defender. O fato é que não existe nenhum caso de melhora de renda ou de bem-estar dos pobres em sistemas em que não há liberdade econômica. Mais: os pobres jamais avançam quando a economia capitalista passa momentos de dificuldade; só melhoram quando há crescimento, investimento privado e lucro. A ofensiva contra a liberdade nos leva de volta à teoria da Terra plana — a épocas da história que morreram e não podem mais voltar.

 

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