As incoerências de Google, Uber e outros do Vale do Silício
As empresas digitais se vendem como inclusivas, igualitárias (em questões de gênero, por exemplo), libertárias. Mas, na real, não é bem assim
Entrevisto, com muita frequência, executivos de empresas como Facebook, Google, Uber e Apple; já falei, por exemplo, com o fundador do Instagram, com VPs do Facebook, com o CEO do Google etc. Usualmente, são homens, brancos e de origem rica (o CEO do Google, Sundar Pichai, é exceção à regra). Em filiais dessas empresas em países em desenvolvimento, como o Brasil, é comum ter até um termo para definir esse estereótipo: “caras brancos de Harvard”. Harvard está aí só como ilustração. Pode ser também de Stanford, ou da USP, ou da ESPM. É comum eu questionar esses “caras de Harvard” sobre como faltam mulheres e negros (só para citar dois exemplos) em altos-cargos dessas empresas; o comum é achá-los apenas em departamentos de… inclusão de gênero e raça. Ao que os “caras de Harvard” costumam responder que as empresas para as quais trabalham são, sim, inclusivas, têm planos para aumentar para X% a quantidade de executivas e por aí vai. Esses argumentos, contudo, têm ido por água abaixo frente a evidências contrárias.
No último fim de semana, por exemplo, vazou um documento de 10 páginas no qual um engenheiro (então, anônimo; mas, claro, seu nome já vazou, também) do Google defendia a diferenciação (e distanciamento) de gêneros dentro de empresas. Para ele, basicamente, mulheres têm de ganhar menos, mesmo, e não seriam aptas a cargos como os de engenharia. Em suas palavras: “No Google, dizem regularmente que preconceitos explícitos e implícitos (inconscientes) seguram as mulheres na indústria da tecnologia e para cargos de liderança. Claro, homem e mulheres têm experiências diferentes (…) mas isso está longe da história verdadeira. Em média, homens e mulheres se diferem biologicamente de diversas formas.” Para ele, “diferenças de gêneros não implicam em sexismo”. Ou ainda, num resumo, haveria, portanto, um discurso autoritário de companhias como o Google, que tentariam forçar uma igualdade de gêneros que, na real, não existiria. Isso seria a crença de tal engenheiro do Google, que a compartilhou internamente, por meio de um memorando.
O depoimento de tal profissional causou indignação de funcionárias do Google. Não só isso, deu início a uma revolta feminista pela internet, em especial nas redes sociais. O que levou o Google a se posicionar, por meio de sua nova vice-presidente de diversidade, integridade e governança, Danielle Brown. Escreveu ela:
“Muitos de vocês leram um documento interno compartilhado por alguém de nossa divisão de engenharia, expressando pontos de vista sobre habilidades naturais e características de diferentes gêneros sexuais, assim como se seria possível falar disso livremente no Google. E, como muitos de vocês, considerei essas conclusões prontamente incorretas (…) Diversidade e inclusão fazem parte de nossos valores fundamentais e da cultura que continuamos a disseminar”
O discurso é bonito. Tais valores também podem até estar, em teoria, no cerne das missões das empresas do Vale do Silício, como o Google. Na prática, contudo, não funciona assim.
O tal engenheiro anônimo do Google se equivocou em sua análise de gêneros. Falta informação e estudo a ele para tratar do assunto. Entretanto, ele também levantou um ponto incontornável. O fato: existe, sim, misognia, racismo e outros “ismos” no ambiente interno das (auto)ditas libertadoras companhias do Vale do Silício.
Nos Estados Unidos, o Google está sendo investigado pelo governo federal por pagar salários menores a mulheres, em comparação com homens, nos mesmos cargos. Nos escritórios da empresa ao redor do globo, em especial em nações em desenvolvimento (como Brasil, Argentina e México), o usual é se deparar com funcionários brancos, homens, provenientes da elite de seus países. E (quase) nada mais do que isso.
Diversidade? Pouquíssima. Muitas vezes, as empresas de tecnologia (não só o Google, praticamente todas) se esforçam para contratar negras, por exemplo, apenas para fingir que são inclusivas. Para sair em reportagens sobre o assunto, por exemplo. Essa constatação não é só minha. Off-the-record (por isso, preservo o nome), certa vez uma diretora de RH de uma das gigantes do setor me confessou o mesmo. E ainda acrescentou: “muitas vezes, tentamos de tudo para colocar mulheres na engenharia, mesmo quando elas são menos qualificadas que outros candidatos; obviamente, só para aumentar a porcentagem interna delas na empresa”.
O problema não é do Google. É geral. Em reportagem recente de VEJA, evidenciou-se como se instaura o machismo no ambiente de startups. Em um texto desta coluna, relatei como funcionárias do Uber têm se manifestado contra casos de assédio sexual na empresa.
E as incoerências não param na questão do gênero. Na edição desta semana de VEJA há uma reportagem sobre como a Apple se curvou diante do autoritarismo do governo chinês. O que não condiz com o discurso da marca, usualmente a favor da privacidade e liberdade de escolha de seus clientes. Não só ela já aceitou exigências da China; Facebook, Google e outras empresas integram a mesma lista.
Em suma, esse texto é para jogar luz sobre o discurso da maioria das empresas do Vale do Silício. Elas não acreditam em seus valores? Claro que acreditam. Não é esse o ponto. O problema é outro: que a realidade é muito mais cinza do que o mundo de doces e flores que é vendido pela maioria daqueles que representam a indústria digital.
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